domingo, 17 de novembro de 2013

Diário de um Aprendiz de Aventureiro

Valag 31, Altossol, 1401 CE.
Ano passado, aos treze anos eu decidi meu futuro. Somente dez anos depois eu comecei a cumpri-lo. Mas não fosse este dia em especial, jamais teria conseguido em momento algum ter me tornado um herói aventureiro.
Meu pai era um homem fechado, demonstrava poucas emoções, exceto por situações bem específicas e seguia a lógica de deixar seus filhos decidirem o que fariam com suas vidas sem se intrometer. Já minha mãe, apesar da liberdade que ela nos concedia, gostava de controlar nossas vidas. Talvez pelo fato dela ser uma estudiosa da mente. Por isso, mesmo eles sendo um casal de aventureiros que viveram por vários anos em missões perigosíssimas, minha mãe não incentivava meu desejo de ser herói e agradecia aos deuses por Mary Anne não ser afetada por ele.
Pelo contrário, minha irmã gostava da ostentação de seus vestidos, joias, dos tibares de ouro, do glamour da riqueza e desde pequena sonhava em ser uma dama da alta sociedade valkariana. Uma tola, em minha opinião.
Apesar do meu desejo, eu também não fiz muita coisa para dar início ao meu sonho. Não treinei com armas, ainda que gostasse de ver meu pai praticar com suas duas machadinhas e nem pratiquei magia, ainda que estudasse a teoria. Minha mãe, já querendo garantir um bom futuro para mim e para minha irmã, desejou que eu entrasse na Universidade Imperial em Valkaria.

- Você terá um futuro. Depois de formado, poderá lecionar em templos de Tanna-Toh, escolas e mesmo na Universidade. O conhecimento que terá será bastante profundo e poderá inseri-lo ainda mais na Corte. – dizia ela.
Primeiramente, eu era contra isso. Nunca fui um entusiasta dos livros, ainda que gostasse e achasse bem divertido o estudo de magia. E eu queria ação, manejar armas, lutar e fazer fanfarronices. Afinal, heróis que lutam são os mais carismáticos e os mais adorados pelo povo. Porém, eu nada fiz mais do que me rebelar na forma de resmungos e respostas malcriadas. Nunca peguei uma muda de roupas e fui embora. Jamais pensei em largar o conforto do meu lar assim, perder a ajuda da família. E eu também não queria decepcionar meus pais.
Nessa dicotomia entre lutar para realizar o meu sonho e manter a linha da minha mãe, decidi seguir o mais fácil. E essa atitude eu carregaria para sempre, se tivesse continuado a morar em Ridembarr.
- Mãe, se vou para a Universidade Imperial, quero estudar História, como o meu tio Louis. E para isso, preciso me preparar melhor. Soube que as escolas de Tanna-Toh em Valkaria são muito melhores que neste vilarejo. Estudaria mais e me prepararia melhor morando por lá. Por que não vamos para lá?
Minha mãe deu uma olhadela para meu pai, achando que eu não teria percebido.
- Preferimos viver no vilarejo, meu filho. A paz agrada a seu pai.
- Aqui podemos cuidar de nossas vidas sem sermos atrapalhados pelos valkarianos, pelas intrigas citadinas, sem nobres a nos importunar a cada passo que damos. Sem falar na liberdade de cavalgar pelos ermos próximos. Não vejo necessidade de nos mudarmos para Valkaria agora. – Meu pai disse, continuando a fala da minha mãe. Porém, notei que ela não concordava muito com isso.
É claro! Ela havia morado a maior parte da vida em Valkaria. Nasceu e cresceu por lá, estudou na Academia Arcana. Ela gostava da balburdia da cidade grande. Estava ali em Ridembarr porque meu pai não gostava de Valkaria. Ele sempre foi muito mateiro, reservado e solitário.
- Então, eu posso ir sozinho. Moraria com vovó Nereida e tio Rennard. E vocês poderiam me visitar aos Valag e feriados.
A troca de olhar deles, dessa vez, me foi despercebida. Minha mãe deve ter utilizado magia para se comunicar com meu pai. Meu pai quem deu o veredito.
- Está certo. Tu já tens quatorze anos, tchê. É um rapaz de mente e corpo suficientemente desenvolvido para lidar com adversidades, sem precisar que estejamos por perto sempre. – O sotaque de Namalkah do meu pai era exótico assim mesmo.
Lembrei-me do ano passado, quando eu e Mary Anne fomos raptados pela medusa Ilendar. Eles só souberam dias depois, quando lhes contei em um almoço familiar com os parentes de Valkaria. Eu queria me gabar frente aos meus primos. Mesmo que eles não tenham acreditado, minha mãe sabia da verdade, pois podia vê-la em minha mente. Depois de esclarecer o ocorrido, eles disseram que não puderam nos ajudar porque estavam em Valkaria, resolvendo um assunto com Julyanantalaria, a elfa que conheci no aniversário de meu pai no ano passado. E, pela distância, minha mãe não tinha como monitorar os nossos passos. Mas depois daquele dia, ela jamais deixou que eu me afastasse muito das cercanias do vilarejo. Minha irmã já não saia de casa, então nem sentiu a diferença. Eu me sentia incomodado e sufocado. Louco para sair da tutela dela.
De qualquer maneira, meu pai tinha um ponto. Eu resolvi sozinho, a questão da medusa. Ok, minha irmã auxiliou, mas eu fui o corajoso, eu quem falei de igual para igual com ela. Mesmo com medo, pude resolver a situação.
No final do dia, eu já tinha minhas roupas arrumadas em malas de couro e meus pergaminhos de contos em uma mochila. Minha mãe me teletransportou para o bairro Jardim de Valkaria, próximo ao centro, onde a estátua da deusa da humanidade residia e consideravelmente perto da Vila Élfica e o bairro de Nitamu-ra.
O bairro Jardim de Valkaria era famoso por ser extremamente residencial e os poucos comerciantes que ali trabalhavam eram moradores do mesmo lugar. Eram lojas requintadas de joias, roupas caras outras luxúrias de gente rica. Mas não era um bairro de tamanha riqueza como a Bairro do Recomeço, o bairro dos nobres. Considero que ali moravam os plebeus mais endinheirados, o máximo de status que uma pessoa comum poderia chegar, não sendo nobre.

O pai da minha mãe, meu avô Joseph Anthony Incarn era um capitão do exército de Valkaria e, por isso, gozou de muito prestígio e dinheiro, podendo dar a seus quatro filhos boas condições de vida. Mesmo após sua morte, minha avó Nereida era uma reles camponesa de um vilarejo qualquer, como Ridembarr. Hoje ela era uma senhora dama do bairro, figura sempre presente na Catedral de Valkaria para as orações. Meus tios tinham vidas próprias e viviam em diversos lugares da cidade de Valkaria.
Meu tio Louis tinha quatro filhos, sendo três do mesmo casamento e o quarto com uma segunda esposa com a qual viviam juntos na Baixa Vila de Lena, o mais tradicional bairro boêmio de Valkaria, cheio de tavernas, teatros, ateliês, guildas de bardos, palcos improvisados e todo tipo de construção destinada a quem respira a vida noturna. Meu tio Louis era um fanfarrão e galanteador incorrigível. Estranhamente, nenhum de seus filhos saiu o pai.
Meu tio Ferdinand tinha apenas uma filha, Carol, e eles moravam no Centro, próximo ao Banco de Tibar, onde ele trabalhava. Carol era a mais velha da terceira geração de filhos, e também a mais mandona. Meu tio era mais recluso e trabalhava muito, por isso não tínhamos muito contato, nem com minha prima.
Já meu tio Rennard, o mais novo dos filhos de Joseph Anthony e Nereida, era um jornalista da Gazeta do Reinado. Era um homem bem agradável e brincalhão. E morava com minha avó Nereida desde que meu avô morreu há dez anos. Por isso, quando fui morar em Valkaria, minha avó e meu tio me recepcionaram na entrada da bela casa de dois andares com um jardim florido (era característica do bairro, onde todas as casas possuíam jardins bonitos).
- Seja bem vindo, meu netinho. Estou ansiosa para cuidar de você. – Disse vovó, apertando minha bochecha. Detestava ser tratado como criança, mas pensei que pudesse ser gentil naquele primeiro momento. Mas minha cara emburrada não me deixava dissimular.
- Bem vindo, Aldred. Aqui sua vida vai mudar.
Rennard disse. E ele estava muito certo.

Kalag 25, Lunaluz, 1401 CE.

O ano passou em um pistar de olhos. Muitas coisas aconteceram no mundo. Na ordem dos eventos mais importantes, não há como negar a libertação de Valkaria. A deusa da humanidade, que era prisioneira em sua estátua de meio quilômetro de altura no centro da capital de mesmo nome, estava agora livre, graças à atuação do grupo épico de heróis, os Libertadores.
As consequências disso são enormes. Minha professora contou a todos sobre como os clérigos e paladinos de Valkaria agora podiam demonstrar seus poderes divinos fora das fronteiras de Deheon. Essa era a grande limitação que os fazia passar por vigaristas, falsários ou iludidos. Agora, abraçados com tais poderes divinos, eles podiam pregar com mais fé ainda nos cantos mais distantes do mundo conhecido.
Fora isso, as pessoas, principalmente os humanos, sentiram-se mais ousados. Esta teoria é defendida por clérigos de Valkaria na Catedral (sim, eu ia à igreja todo Valag). Com a deusa da humanidade e da ambição livre, todos os aventureiros, mesmo de raças não humanas, sentiam-se mais inspirados e compelidos a sair em busca de missões.
Não sei se foi por influência do sermão do clérigo de Valkaria, ou se era verdade o que ele dizia, mas eu senti mais vontade ainda de ser herói. E por isso, pensei em entrar para alguma academia militar e aprender finalmente a lutar.
Infelizmente, nessa época eu era ainda um estranho em Valkaria. Sempre achei que quando pisasse meus pés na maior metrópole do mundo eu estaria encaixado, estaria entrosado com aquela vida pulsante e agitada. Mas não. Eu era um caipirazinho, criado em um vilarejo minúsculo que invejava a vida na cidade grande. Mas eu não sabia o que isso significaria.
As pessoas eram frias, existia violência, o medo de ser atacado por algum bandido. O preconceito sobre goblins cresceu mais do que o normal em mim. Nas duas vezes que fui assaltado, os dois assaltantes eram goblins. Havia áreas muito pobres, onde as pessoas eram mais felizes, faziam festas constantes, mas não eram abertos a pessoas como eu, de uma classe mais abastada.
Porém, apesar de esnobes, os valkarianos têm certa razão. Não existe lugar mais cosmopolita, mais diversificado que Valkaria. Vi todo tipo de pessoa, de todo tipo de raça. As ruas eram repletas de cheiros de especiarias exóticas, idiomas diversos e etc.
Ao longo do ano, fiz poucas amizades. Na verdade, era o mesmo esquema que contei a você, leitor. Algumas pessoas me consideravam amigos, mas eu os via como colegas. Chamavam-me para beber às escondidas em tavernas de gosto duvidoso. Eu ia, bebia e tive meu primeiro porre no meu aniversário de quatorze anos.
Os meus primos que viviam razoavelmente perto de mim, me visitavam sempre. Nós saíamos juntos com muito mais frequência. Acho que por isso eu acabei eliminando a necessidade de outro tipo de amizade.
David era meu primo mais velho, tinha já dezesseis anos, era um homem feito, praticamente. Ele tinha uma namorada e isso era um máximo para nós. Muito inteligente e com músculos invejáveis, ele dizia que seria miliciano em breve. De certa forma, eu o admirava e tentava me espelhar um pouco nele. Mas não muito, ele era certinho demais. Eu era mais relapso, mais relaxado e mais rebelde. Coisa de garoto mimado. Ian era mais velho que eu também, mas por meses. Ele era mais calado, mas era mais sarcástico também. Tinha sempre seus comentários ácidos. Peter era mais novo que eu, mas, novamente, por um ano de diferença. Ele era o alvo das brincadeiras majoritárias de David. Mas ele era feliz e ria bastante das coisas. Havia meu primo mais novo, a criança Francis, que tinha uns oito ou nove anos. Ele vivia chorando, conseguia vencer minha irmã na quantidade de lágrimas. Ele não podia sair conosco. Louis o protegia demais, pois sabia que os outros filhos, meus primos, não aceitavam muito bem o garoto, filho de uma mulher que não era sua mãe.
Todos esses problemas familiares à parte, nós brincávamos muito e até gostávamos de ir bastante à Arena Imperial ver luta de gladiadores. Eu e David torcíamos pelo mesmo gladiador, o Rubro Negro. Ian preferia o Palestrino e Peter o Lança-Chamas. Essas lutas de gladiadores eram bastante divertidas e as torcidas era um show à parte. As pessoas cantavam músicas em sintonia para apoiar o seu gladiador preferido ou para depreciar o gladiador adversário. Rivalidades saudáveis eram forjadas, como as minhas com meus primos. Mas também havia os exageros, pessoas que brigavam nas ruas, causando comoção, quebra-quebra, precisando da intervenção da milícia.
O ano foi de bastante aprendizado, mas eu fiquei muito fechado ao círculo familiar. Eu considerava que não havia me adaptado direito à cidade. Então, neste dia 25 de Lunaluz, eu e meus primos fomos ao bairro de Nitamu-ra para me aproximar, finalmente, da cultura que eu admirava pelos contos dados a mim por Satoshi Yamada. Muito embora os tamuranianos possuam um calendário próprio, essa data se tornou importante em Valkaria por conta de sua influência na cidade desde a chegada dos primeiros orientais, um pouco mais de uma década atrás. Antes da tragédia conhecida como Tormenta que destruiu sua ilha natal, eles comemoravam esse dia com festas, em celebração e homenagem ao seu deus protetor do povo do Império de Jade: Lin-Wu.
Com as ruelas do bairro cheias de gente, com barracas de comidas exóticas (para nós, claro), brinquedos, jogos e apresentações musicais, nós caminhamos maravilhados com tudo. Na verdade, eu estava assim, meus primos não se importavam muito. Chegamos a uma pracinha onde havia uma exibição de dois samurais – guerreiros aristocráticos – com suas espadas katanas.
Assim que pus meus olhos nessa espada, apaixonei-me pela primeira vez. Uma lâmina longa, levemente curvada, com um lado afiado. Os dois samurais combatiam com extrema destreza. Suas roupas eram parecidas com as dos tamuranianos comuns: um quimono pesado e calças largas ou saiotes. A maioria usava chilenos de palha, ou tamancos de madeira e meias. Os samurais vestiam isso também, mas com suas espadas em punho e espadas mais curtas na cintura.
Fiquei maravilhado com a luta. Minha vontade era de encontrar algum mestre (sensei, na língua tamuraniana) para me ensinar a manejar uma katana daquele jeito. Enquanto eu comia um espetinho de carne e legumes, minha visão periférica me alertou de um rosto conhecido. Virei minha cabeça, procurei com os olhos e a vi, linda e deslocada. Julyanantalaria trajava um belo vestido longo verde com adornos brancos nas bordas. Seus cabelos lisos e castanhos escuros estavam presos em um rabo de cavalo simples. Seus olhos azuis claros como o céu estavam perdidos, admirando a exibição dos dois samurais.
- É aquela amiga dos seus pais, né? – Disse David, cutucando meu ombro, tirando-me do transe em que estava mergulhado.
- É ela mesma. Julyanantalaria. – Eu disse, ainda segurando meu queixo.
- Você sabia que elfos vivem dez vezes mais que os humanos? – Peter falou ainda com a boca cheia de arroz.
- Você sabe a idade dela? De repente ela pode ter uma idade equivalente parecida com a nossa. – Perguntou David.
- Não seja bobo, ela pode até ser jovem para um elfo, mas ainda assim, tem mais de cem anos de vida. Ela é uma velha. – Disse Ian, debochado.
- Ela tem cento e setenta e cinco anos. Ou seis, não sei quando ela faz aniversário. – Eu disse, engolindo seco. Ela teria, então, “dezessete anos humanos”, por assim dizer. Uma idade não muito diferente da minha, quinze anos.
- Não vai falar com ela?- Disse David olhando como se me desafiasse.
- Não. – Não aceitei. Não era muito de aceitar esse tipo de desafio. Nada mais sobre aquilo foi dito naquela noite no bairro de Nitamu-ra. Eu a perdi de vista também.
Experimentamos a bebida alcoólica dos tamuranianos, o tal do saquê e achei bem forte. Gostei, entretanto e decidi que tomaria um pouco uma vez por mês, pelo menos. Pensei em trazer alguns colegas da escola algum dia desses.

O dia foi muito especial por ter me aproximado ainda mais da cultura tamuraniana, mas o quase encontro com Julyanantalaria foi mais significativo. Com um sorriso, eu começava a entender mais um pouco a cidade de Valkaria, cheia de possibilidades.

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