Valag 31,
Altossol, 1401 CE.
Ano passado, aos treze anos eu
decidi meu futuro. Somente dez anos depois eu comecei a cumpri-lo. Mas não
fosse este dia em especial, jamais teria conseguido em momento algum ter me
tornado um herói aventureiro.
Meu pai era um homem fechado,
demonstrava poucas emoções, exceto por situações bem específicas e seguia a
lógica de deixar seus filhos decidirem o que fariam com suas vidas sem se
intrometer. Já minha mãe, apesar da liberdade que ela nos concedia, gostava de
controlar nossas vidas. Talvez pelo fato dela ser uma estudiosa da mente. Por
isso, mesmo eles sendo um casal de aventureiros que viveram por vários anos em
missões perigosíssimas, minha mãe não incentivava meu desejo de ser herói e
agradecia aos deuses por Mary Anne não ser afetada por ele.
Pelo contrário, minha irmã
gostava da ostentação de seus vestidos, joias, dos tibares de ouro, do glamour
da riqueza e desde pequena sonhava em ser uma dama da alta sociedade
valkariana. Uma tola, em minha opinião.
Apesar do meu desejo, eu também
não fiz muita coisa para dar início ao meu sonho. Não treinei com armas, ainda
que gostasse de ver meu pai praticar com suas duas machadinhas e nem pratiquei
magia, ainda que estudasse a teoria. Minha mãe, já querendo garantir um bom
futuro para mim e para minha irmã, desejou que eu entrasse na Universidade
Imperial em Valkaria.
- Você terá um futuro. Depois
de formado, poderá lecionar em templos de Tanna-Toh, escolas e mesmo na
Universidade. O conhecimento que terá será bastante profundo e poderá inseri-lo
ainda mais na Corte. – dizia ela.
Primeiramente, eu era contra
isso. Nunca fui um entusiasta dos livros, ainda que gostasse e achasse bem
divertido o estudo de magia. E eu queria ação, manejar armas, lutar e fazer
fanfarronices. Afinal, heróis que lutam são os mais carismáticos e os mais
adorados pelo povo. Porém, eu nada fiz mais do que me rebelar na forma de
resmungos e respostas malcriadas. Nunca peguei uma muda de roupas e fui embora.
Jamais pensei em largar o conforto do meu lar assim, perder a ajuda da família.
E eu também não queria decepcionar meus pais.
Nessa dicotomia entre lutar
para realizar o meu sonho e manter a linha da minha mãe, decidi seguir o mais
fácil. E essa atitude eu carregaria para sempre, se tivesse continuado a morar
em Ridembarr.
- Mãe, se vou para a
Universidade Imperial, quero estudar História, como o meu tio Louis. E para
isso, preciso me preparar melhor. Soube que as escolas de Tanna-Toh em Valkaria
são muito melhores que neste vilarejo. Estudaria mais e me prepararia melhor
morando por lá. Por que não vamos para lá?
Minha mãe deu uma olhadela para
meu pai, achando que eu não teria percebido.
- Preferimos viver no vilarejo,
meu filho. A paz agrada a seu pai.
- Aqui podemos cuidar de nossas
vidas sem sermos atrapalhados pelos valkarianos, pelas intrigas citadinas, sem
nobres a nos importunar a cada passo que damos. Sem falar na liberdade de
cavalgar pelos ermos próximos. Não vejo necessidade de nos mudarmos para
Valkaria agora. – Meu pai disse, continuando a fala da minha mãe. Porém, notei
que ela não concordava muito com isso.
É claro! Ela havia morado a
maior parte da vida em Valkaria. Nasceu e cresceu por lá, estudou na Academia
Arcana. Ela gostava da balburdia da cidade grande. Estava ali em Ridembarr
porque meu pai não gostava de Valkaria. Ele sempre foi muito mateiro, reservado
e solitário.
- Então, eu posso ir sozinho.
Moraria com vovó Nereida e tio Rennard. E vocês poderiam me visitar aos Valag e
feriados.
A troca de olhar deles, dessa
vez, me foi despercebida. Minha mãe deve ter utilizado magia para se comunicar
com meu pai. Meu pai quem deu o veredito.
- Está certo. Tu já tens
quatorze anos, tchê. É um rapaz de mente e corpo suficientemente desenvolvido
para lidar com adversidades, sem precisar que estejamos por perto sempre. – O
sotaque de Namalkah do meu pai era exótico assim mesmo.
Lembrei-me do ano passado,
quando eu e Mary Anne fomos raptados pela medusa Ilendar. Eles só souberam dias
depois, quando lhes contei em um almoço familiar com os parentes de Valkaria.
Eu queria me gabar frente aos meus primos. Mesmo que eles não tenham acreditado,
minha mãe sabia da verdade, pois podia vê-la em minha mente. Depois de
esclarecer o ocorrido, eles disseram que não puderam nos ajudar porque estavam
em Valkaria, resolvendo um assunto com Julyanantalaria, a elfa que conheci no
aniversário de meu pai no ano passado. E, pela distância, minha mãe não tinha
como monitorar os nossos passos. Mas depois daquele dia, ela jamais deixou que
eu me afastasse muito das cercanias do vilarejo. Minha irmã já não saia de
casa, então nem sentiu a diferença. Eu me sentia incomodado e sufocado. Louco
para sair da tutela dela.
De qualquer maneira, meu pai
tinha um ponto. Eu resolvi sozinho, a questão da medusa. Ok, minha irmã
auxiliou, mas eu fui o corajoso, eu quem falei de igual para igual com ela.
Mesmo com medo, pude resolver a situação.
No final do dia, eu já tinha
minhas roupas arrumadas em malas de couro e meus pergaminhos de contos em uma
mochila. Minha mãe me teletransportou para o bairro Jardim de Valkaria, próximo
ao centro, onde a estátua da deusa da humanidade residia e consideravelmente
perto da Vila Élfica e o bairro de Nitamu-ra.
O bairro Jardim de Valkaria era
famoso por ser extremamente residencial e os poucos comerciantes que ali
trabalhavam eram moradores do mesmo lugar. Eram lojas requintadas de joias, roupas
caras outras luxúrias de gente rica. Mas não era um bairro de tamanha riqueza
como a Bairro do Recomeço, o bairro dos nobres. Considero que ali moravam os
plebeus mais endinheirados, o máximo de status que uma pessoa comum poderia
chegar, não sendo nobre.
O pai da minha mãe, meu avô
Joseph Anthony Incarn era um capitão do exército de Valkaria e, por isso, gozou
de muito prestígio e dinheiro, podendo dar a seus quatro filhos boas condições
de vida. Mesmo após sua morte, minha avó Nereida era uma reles camponesa de um
vilarejo qualquer, como Ridembarr. Hoje ela era uma senhora dama do bairro,
figura sempre presente na Catedral de Valkaria para as orações. Meus tios
tinham vidas próprias e viviam em diversos lugares da cidade de Valkaria.
Meu tio Louis tinha quatro
filhos, sendo três do mesmo casamento e o quarto com uma segunda esposa com a
qual viviam juntos na Baixa Vila de Lena, o mais tradicional bairro boêmio de
Valkaria, cheio de tavernas, teatros, ateliês, guildas de bardos, palcos
improvisados e todo tipo de construção destinada a quem respira a vida noturna.
Meu tio Louis era um fanfarrão e galanteador incorrigível. Estranhamente,
nenhum de seus filhos saiu o pai.
Meu tio Ferdinand tinha apenas
uma filha, Carol, e eles moravam no Centro, próximo ao Banco de Tibar, onde ele
trabalhava. Carol era a mais velha da terceira geração de filhos, e também a
mais mandona. Meu tio era mais recluso e trabalhava muito, por isso não
tínhamos muito contato, nem com minha prima.
Já meu tio Rennard, o mais novo
dos filhos de Joseph Anthony e Nereida, era um jornalista da Gazeta do Reinado.
Era um homem bem agradável e brincalhão. E morava com minha avó Nereida desde
que meu avô morreu há dez anos. Por isso, quando fui morar em Valkaria, minha
avó e meu tio me recepcionaram na entrada da bela casa de dois andares com um
jardim florido (era característica do bairro, onde todas as casas possuíam
jardins bonitos).
- Seja bem vindo, meu netinho.
Estou ansiosa para cuidar de você. – Disse vovó, apertando minha bochecha.
Detestava ser tratado como criança, mas pensei que pudesse ser gentil naquele
primeiro momento. Mas minha cara emburrada não me deixava dissimular.
- Bem vindo, Aldred. Aqui sua
vida vai mudar.
Rennard disse. E ele estava
muito certo.
Kalag 25, Lunaluz,
1401 CE.
O ano passou em um pistar de
olhos. Muitas coisas aconteceram no mundo. Na ordem dos eventos mais
importantes, não há como negar a libertação de Valkaria. A deusa da humanidade,
que era prisioneira em sua estátua de meio quilômetro de altura no centro da
capital de mesmo nome, estava agora livre, graças à atuação do grupo épico de
heróis, os Libertadores.
As consequências disso são
enormes. Minha professora contou a todos sobre como os clérigos e paladinos de
Valkaria agora podiam demonstrar seus poderes divinos fora das fronteiras de
Deheon. Essa era a grande limitação que os fazia passar por vigaristas,
falsários ou iludidos. Agora, abraçados com tais poderes divinos, eles podiam
pregar com mais fé ainda nos cantos mais distantes do mundo conhecido.
Fora isso, as pessoas,
principalmente os humanos, sentiram-se mais ousados. Esta teoria é defendida
por clérigos de Valkaria na Catedral (sim, eu ia à igreja todo Valag). Com a
deusa da humanidade e da ambição livre, todos os aventureiros, mesmo de raças
não humanas, sentiam-se mais inspirados e compelidos a sair em busca de
missões.
Não sei se foi por influência
do sermão do clérigo de Valkaria, ou se era verdade o que ele dizia, mas eu
senti mais vontade ainda de ser herói. E por isso, pensei em entrar para alguma
academia militar e aprender finalmente a lutar.
Infelizmente, nessa época eu
era ainda um estranho em Valkaria. Sempre achei que quando pisasse meus pés na
maior metrópole do mundo eu estaria encaixado, estaria entrosado com aquela
vida pulsante e agitada. Mas não. Eu era um caipirazinho, criado em um vilarejo
minúsculo que invejava a vida na cidade grande. Mas eu não sabia o que isso
significaria.
As pessoas eram frias, existia
violência, o medo de ser atacado por algum bandido. O preconceito sobre goblins
cresceu mais do que o normal em mim. Nas duas vezes que fui assaltado, os dois
assaltantes eram goblins. Havia áreas muito pobres, onde as pessoas eram mais
felizes, faziam festas constantes, mas não eram abertos a pessoas como eu, de
uma classe mais abastada.
Porém, apesar de esnobes, os
valkarianos têm certa razão. Não existe lugar mais cosmopolita, mais
diversificado que Valkaria. Vi todo tipo de pessoa, de todo tipo de raça. As
ruas eram repletas de cheiros de especiarias exóticas, idiomas diversos e etc.
Ao longo do ano, fiz poucas
amizades. Na verdade, era o mesmo esquema que contei a você, leitor. Algumas
pessoas me consideravam amigos, mas eu os via como colegas. Chamavam-me para
beber às escondidas em tavernas de gosto duvidoso. Eu ia, bebia e tive meu
primeiro porre no meu aniversário de quatorze anos.
Os meus primos que viviam
razoavelmente perto de mim, me visitavam sempre. Nós saíamos juntos com muito
mais frequência. Acho que por isso eu acabei eliminando a necessidade de outro
tipo de amizade.
David era meu primo mais velho,
tinha já dezesseis anos, era um homem feito, praticamente. Ele tinha uma
namorada e isso era um máximo para nós. Muito inteligente e com músculos
invejáveis, ele dizia que seria miliciano em breve. De certa forma, eu o
admirava e tentava me espelhar um pouco nele. Mas não muito, ele era certinho
demais. Eu era mais relapso, mais relaxado e mais rebelde. Coisa de garoto
mimado. Ian era mais velho que eu também, mas por meses. Ele era mais calado,
mas era mais sarcástico também. Tinha sempre seus comentários ácidos. Peter era
mais novo que eu, mas, novamente, por um ano de diferença. Ele era o alvo das
brincadeiras majoritárias de David. Mas ele era feliz e ria bastante das
coisas. Havia meu primo mais novo, a criança Francis, que tinha uns oito ou
nove anos. Ele vivia chorando, conseguia vencer minha irmã na quantidade de
lágrimas. Ele não podia sair conosco. Louis o protegia demais, pois sabia que
os outros filhos, meus primos, não aceitavam muito bem o garoto, filho de uma
mulher que não era sua mãe.
Todos esses problemas
familiares à parte, nós brincávamos muito e até gostávamos de ir bastante à
Arena Imperial ver luta de gladiadores. Eu e David torcíamos pelo mesmo
gladiador, o Rubro Negro. Ian preferia o Palestrino e Peter o Lança-Chamas.
Essas lutas de gladiadores eram bastante divertidas e as torcidas era um show à
parte. As pessoas cantavam músicas em sintonia para apoiar o seu gladiador
preferido ou para depreciar o gladiador adversário. Rivalidades saudáveis eram
forjadas, como as minhas com meus primos. Mas também havia os exageros, pessoas
que brigavam nas ruas, causando comoção, quebra-quebra, precisando da
intervenção da milícia.
O ano foi de bastante
aprendizado, mas eu fiquei muito fechado ao círculo familiar. Eu considerava
que não havia me adaptado direito à cidade. Então, neste dia 25 de Lunaluz, eu
e meus primos fomos ao bairro de Nitamu-ra para me aproximar, finalmente, da
cultura que eu admirava pelos contos dados a mim por Satoshi Yamada. Muito
embora os tamuranianos possuam um calendário próprio, essa data se tornou
importante em Valkaria por conta de sua influência na cidade desde a chegada
dos primeiros orientais, um pouco mais de uma década atrás. Antes da tragédia
conhecida como Tormenta que destruiu sua ilha natal, eles comemoravam esse dia
com festas, em celebração e homenagem ao seu deus protetor do povo do Império
de Jade: Lin-Wu.
Com as ruelas do bairro cheias
de gente, com barracas de comidas exóticas (para nós, claro), brinquedos, jogos
e apresentações musicais, nós caminhamos maravilhados com tudo. Na verdade, eu
estava assim, meus primos não se importavam muito. Chegamos a uma pracinha onde
havia uma exibição de dois samurais – guerreiros aristocráticos – com suas
espadas katanas.
Assim que pus meus olhos nessa
espada, apaixonei-me pela primeira vez. Uma lâmina longa, levemente curvada,
com um lado afiado. Os dois samurais combatiam com extrema destreza. Suas
roupas eram parecidas com as dos tamuranianos comuns: um quimono pesado e calças
largas ou saiotes. A maioria usava chilenos de palha, ou tamancos de madeira e
meias. Os samurais vestiam isso também, mas com suas espadas em punho e espadas
mais curtas na cintura.
Fiquei maravilhado com a luta.
Minha vontade era de encontrar algum mestre (sensei, na língua tamuraniana)
para me ensinar a manejar uma katana daquele jeito. Enquanto eu comia um
espetinho de carne e legumes, minha visão periférica me alertou de um rosto
conhecido. Virei minha cabeça, procurei com os olhos e a vi, linda e deslocada.
Julyanantalaria trajava um belo vestido longo verde com adornos brancos nas
bordas. Seus cabelos lisos e castanhos escuros estavam presos em um rabo de
cavalo simples. Seus olhos azuis claros como o céu estavam perdidos, admirando
a exibição dos dois samurais.
- É aquela amiga dos seus pais,
né? – Disse David, cutucando meu ombro, tirando-me do transe em que estava
mergulhado.
- É ela mesma. Julyanantalaria.
– Eu disse, ainda segurando meu queixo.
- Você sabia que elfos vivem
dez vezes mais que os humanos? – Peter falou ainda com a boca cheia de arroz.
- Você sabe a idade dela? De
repente ela pode ter uma idade equivalente parecida com a nossa. – Perguntou
David.
- Não seja bobo, ela pode até
ser jovem para um elfo, mas ainda assim, tem mais de cem anos de vida. Ela é
uma velha. – Disse Ian, debochado.
- Ela tem cento e setenta e
cinco anos. Ou seis, não sei quando ela faz aniversário. – Eu disse, engolindo
seco. Ela teria, então, “dezessete anos humanos”, por assim dizer. Uma idade
não muito diferente da minha, quinze anos.
- Não vai falar com ela?- Disse
David olhando como se me desafiasse.
- Não. – Não aceitei. Não era
muito de aceitar esse tipo de desafio. Nada mais sobre aquilo foi dito naquela
noite no bairro de Nitamu-ra. Eu a perdi de vista também.
Experimentamos a bebida
alcoólica dos tamuranianos, o tal do saquê e achei bem forte. Gostei,
entretanto e decidi que tomaria um pouco uma vez por mês, pelo menos. Pensei em
trazer alguns colegas da escola algum dia desses.
O dia foi muito especial por
ter me aproximado ainda mais da cultura tamuraniana, mas o quase encontro com
Julyanantalaria foi mais significativo. Com um sorriso, eu começava a entender
mais um pouco a cidade de Valkaria, cheia de possibilidades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário