O
mundo pós-apocalíptico é um tema clássico da ficção fantástica ocidental.
Livros, filmes, séries, entre outros já abordaram esse tema sobre diferentes
perspectivas e visões de como seria um mundo onde a civilização humana de
alguma forma desmoronasse por completo.
Dentre
esses cenários pós-apocalípticos, aquele que acostumamos chamar de “apocalipse
zumbi” é um dos preferidos do mundo nerd. O último grande sucesso com essa
temática é a série The Walking Dead. Inspirada num HQ publicado nos Estados Unidos pela Image Comics a
partir de 2003, escrito por Robert Kirkman, a série foi um sucesso e o canal AMC (quem transmite The Walking Dead)
já garantiu contrato para uma quarta temporada.
Mas nós devemos ver além
dos zumbis legais, das fugas emocionantes e da extrema violência cômica. As
histórias de apocalipse zumbi – assim como todas aquelas que abordam o fim da
civilização como a conhecemos – são palco privilegiado para abordamos visões
sobre o comportamento social do ser humano.
O sucesso da série foi tão grande, que não
faltam artigos na internet que buscam pensar como a série representa questões
da humanidade em geral. Porém, a maioria desses textos se prende em aspectos
éticos e existenciais de um mundo destruído pelo apocalipse. Nós, como nerds
revolucionários, buscaremos um enfoque nas relações sociais e de poder, além
das questões existenciais e éticas como reflexo direto da sociedade em que os
personagens vivem.
Fim do mundo? É assim que diversos
personagens de The Walking Dead descreveram a atual situação do planeta depois
da contaminação global que dizimou a grande maioria das pessoas
transformando-as em mortos-vivos assassinos. Porém, o planeta fisicamente falando,
continuou ali, praticamente intacto. O que assistimos na série é o fim de uma
civilização. E não é de uma civilização qualquer. Assistimos em The Walking
Dead o fim do capitalismo.
Porém, diferente do que lutaram Mark,
Backunin e tantos outros, o fim do capitalismo não foi fruto da ação organizada
e coletiva da classe trabalhadora em pró de um sistema igualitário, democrático
e livre de verdade. O capitalismo foi destruído, pois toda a civilização foi
destruída por um evento biológico mundial. Sendo assim, os personagens da série
não vivem na construção de uma nova sociedade, mas sim nas ruinas desta última.
Marx já dizia que todo novo modo de produção
contém elementos do antigo. Ou seja, a grosso modo, o feudalismo preservou
elementos da antiguidade europeia, assim como o capitalismo preservou elementos
do modo de produção feudal. Claro que isso não ocorre de forma mecânica e sim
dialética. No caso de The Walking Dead, a preservação de elementos da sociedade
destruída é ainda mais forte, já que ela não foi superada por nada,
simplesmente ruiu devido a um acontecimento fora do controle da humanidade.
Portanto, vivendo nas ruinas do capitalismo –
e mais especificamente, nas ruinas do capitalismo estadunidense - os
personagens vão reproduzir as relações com as quais estavam acostumados,
adaptadas aos novos tempos. Assim, nos primeiros episódios da primeira
temporada é possível perceber claramente a divisão social do trabalho,
incluindo todos os preconceitos e questões de classe. As mulheres são
responsáveis pelos serviços “doméstico” no acampamento de sobreviventes e os
homens pela proteção e por trazer alimentos. Entre os homens há também divisão,
pois, para o coreano (ex entregador de pizza) as tarefas são diferentes do que
para os homens brancos e tipicamente estadunidense.
Com o passar do tempo, a própria necessidade
de sobrevivência num ambiente selvagem e perigoso elimina alguma dessas
barreiras sociais quando, por exemplo, na terceira temporada as mulheres passam
a ser tão importantes quanto os homens na defesa do “grupo”.
O grupo, como são conhecidos alguns
sobreviventes que se juntaram para melhor se protegerem e protegerem sua
família passa a ser a representação da sociedade. Ao longo da segunda temporada
há cada vez mais evidente um embate político entre parte do grupo que acredita
que a defesa desse grupo está acima de tudo e qualquer coisa é plausível para
defender esse grupo – chamaremos aqui da “corrente” do Shane (líder desse
grupo). E há, por sua vez, aqueles que acreditam que não podemos abandonar
valores éticos e humanos só porque a civilização está em ruinas.
A resolução desse embate não podia ter sido
mais trágica e emocionante. Dale, o principal representante da “corrente” mais
“humanista” convence Rick (personagem principal e líder do grupo) a
democratizar uma decisão importante que definiria a vida ou a morte de um
garoto “estrangeiro” ao grupo. Apesar do momento mais democrático dessa pequena
sociedade, vence a posição defendida pelo Shane decidindo assim matar o garoto.
Numa reviravolta impressionante, Dale morre depois de aceitar a derrota na
decisão coletiva do grupo, e Shane morre como o traidor que fez tudo por conta
própria e tentou matar o Rick.
Esses acontecimentos poderiam fazer com que a
“corrente” humanista prevalecesse, aumentando a democratização das decisões do
grupo. Porém não é o que acontece. No último episódio, em um momento
emblemático, Rick diz: “Não há mais democracia!” e implicitamente ele se
colocava como líder supremo do grupo.
Esses elementos vão ser a base para a
terceira temporada, que nesse momento ainda está no início, mas já nos dá novos
elementos sociais interessantes para trabalharmos. A vitória do pensamento de
defesa do grupo acima de tudo é posto como consequência de uma sociedade sem
leis, perigosa e caótica, que favorece àqueles que abandonam antigos valores
éticos e até mesmo religiosos.
Apesar do grupo tornar-se mais eficiente em
termos de sobrevivência, isto também leva a ruina emocional de Rick e sua
esposa. Dessa forma, o autor mostra que num mundo sem leis, sem governo e sem
as regras sociais subjetivas de uma sociedade de consumo e mercado – ou como
eles costumam erroneamente denominar: na anarquia – as relações sociais se
deterioram e naturalmente se eleva poderes antidemocráticos.
Ainda mais simbólico que isso é o que
acontece com Andrea e a nova personagem: a marcante Michonne. Elas encontram
uma ilha de civilização no mundo de caos. Um lugar onde as famílias trabalham,
as crianças brincam, e ninguém precisa se preocupar em não ser mordido por um
zumbi o tempo todo. Essa sociedade, fortemente defendida por homens treinados e
com um arsenal de guerra poderoso, é liderada pelo “governador”. O personagem
que não revela seu nome para ninguém é uma figura carismática, bem afeiçoada, a
qual todos agradecem pela existência desse pequeno paraíso.
Todos menos Michonne. Ela, acostumada a
sobreviver sozinha e desconfiada de tudo e todos é a primeira a perceber que
nem tudo era perfeito nesse paraíso. Ao longo dos primeiros episódios logo
vemos que o governador controla sua sociedade com mãos de ferro, mesmo que
usando luvas de ceda. Ou seja, de forma sutil e carismática, ele garante que
ninguém saia ou entre ali sem seu conhecimento e aprovação. Qualquer um que
desafia isto, propositalmente ou não, é morto impiedosamente. Para isso ele
conta com um pequeno grupo de confiança que conhece um pouco mais do que ocorre
nos “bastidores do poder”. Entre eles está Merle, um violento neonazista, com
diversas passagens pela prisão e que é responsável pela segurança do local. E
também um cientista responsável por diversos experimentos com zumbis. Como se
não bastasse, á também o dia do festival, quando “gladiadores” se espancam numa
arena cercada de zumbis (sem dentes e mandíbulas), para a diversão da
população.
Assim, do caos nasce o fascismo. Um líder
forte e carismático, hierarquia inquestionável, sociedade altamente
militarizada e fortemente controlada e, é claro, um grupo próximo de
colaboradores inescrupulosos e leais como um cachorro. Ou seja, quando ruiu o
Estado liberal, o mercado e o capitalismo, quando o mundo entrou na “anarquia”
(Ou no que eles pensam ser a anarquia) a consequência foi o fascismo. Se os
valores da propriedade e da família são arruinados, a natureza humana vai gerar
sociedade autoritárias e ditatoriais (“Veja a URSS!” dirão alguns).
Ainda nessa linha de pensamento, é
interessante vermos que Michonne, a Self Made Man/Woman, solitária,
individualista foi a única que percebeu a maldade da falsa sociedade perfeita e
a máscara do “governador”. Uma sobrevivente do pensamento liberal nas ruinas da
civilização.
Será, então, que a ascensão do fascismo e de
regimes autoritários em geral é fruto simplesmente da falência do liberalismo e
de seu modelo de Estado? E não é assim que aprendemos na escola? Devido a crise
da década de 1930, o fascismo chegou ao poder na Alemanha, Itália, Espanha e
Portugal. Explicação boa para quem quer desvincular essas ideologias do
capitalismo.
Portanto, é importante afirmamos aqui que o
fascismo é capitalista. Em todos os países em que essa ideologia chegou ao
poder, foi amplamente apoiada pelos grandes empresários nacionais, que
aplaudiam emocionados os discursos de Hittler, vendo seus bolsos cheios e seus
operários controlados e pacificados. Sabemos que não é o capitalismo liberal
que tanto amam democratas e republicanos nos Estados Unidos, mas ainda assim
garantiu a sobrevivência de um sistema econômica baseado na exploração do homem
pelo homem e na propriedade privada dos meios de produção. Sendo assim, não há
nenhuma contradição de classe, quando os empresários apoiam e financiam regimes
ditatoriais (não só fascistas, como também os regimes civis-militares na
América Latina), pelo contrário, esses regimes garantiram a manutenção de sua
classe no mais alto posto da hierarquia social.
Então porque não dizermos que a ascensão de
regimes autoritários e fascistas não é fruto do próprio regime capitalista
liberal, só que melhor adaptado à uma conjuntura específica? Até porque o
Estado liberal não deixa de ser autoritário e antidemocrático quando o assunto
é a autopreservação de seus privilégios. O Estado mínimo, que não deve intervir
na economia, tem grande força para impor a ordem social contra qualquer
questionamento dos de baixo.
Assim, o que o “governador” está tentando
fazer num mundo pós-apocalipse zumbi é garantir a preservação da sociedade que
ele conheceu, readaptada aos novos tempos. Não precisamos destruir toda a
civilização com um vírus mortal que transforme as pessoas em mortos-vivos, para
defendermos esse ponto de vista. Basta analisarmos algumas grandes tragédias
que assolaram a humanidade. Uma delas em particular é bastante exemplar para o
que estamos tratando: a destruição do furacão Katrina que destruiu Nova Orleans
no sul dos Estados Unidos.
Depois que a cidade foi completamente varrida
pelos ventos do furacão e depois pela inundação provocada por um dique partido,
a assistência governamental agiu de forma absolutamente lenta no envio de ajuda
aos atingidos pela tragédia (diferente de quando um fenômeno natural desses
atinge o norte rico, como vimos no Sandy). A consequência disso foi alguns dias
de falta de governo, falta de estrutura e paralização das relações comerciais -
não muito diferente do que assistimos em The Walking Dead – o que gerou
inúmeros saques, além do aumento da violência que em Nova Orleans alcançou
níveis alarmantes desde a tragédia.
Numa sociedade que estimula o individualismo,
o consumismo e a competitividade como valores do que é ser “Americano”, quando
as leis e instituições que garantem minimamente a convivência social (mesmo que
através da alienação e da repressão) simplesmente somem, a consequência disso é
a exacerbação desses sentimentos ao invés do esforço coletivo. E, em meio ao
caos e a violência, um homem, ou ideologia que promete a pacificação em troca
de lealdade e subserviência torna-se tentadora.
http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL840609-15525,00-NOVA+ORLEANS+E+MAIS+VIOLENTA+QUE+AS+GRANDES+CIDADES+BRASILEIRAS.html
http://sociologiamelhormateria.blogspot.com.br/2012/10/the-walking-dead-e-sociologia.html
Rapaz, o artigo é ótimo. Você está de parabéns!
ResponderExcluirMUito bom vai virar conteúdo de aulas em breve!!!!
ResponderExcluirÓtimo artigo!
ResponderExcluirValeu gente. Dá para perceber que escrevi tem um tempo. Não me debrucei sobre os novos acontecimentos dos episódios mais recentes. Mas podem partir daí, quem quiser
ResponderExcluirE o comunismo/socialismo, vai bem? >.<
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