NITERÓI
2012
Introdução
Embrenhar-se no estudo de questões urbanas impõe certo esforço em lidar
com aspectos complexos e abrangentes. Não apenas a técnica e o espaço, mas as
questões sociais, culturais e políticas preocupam quem assume tal esforço,
visto estarem todas essas dimensões na própria essência da questão urbana.
O debate acadêmico sobre a cidade - materialidade e representação
historicamente constituída - tem sido assíduo em diversos campos do
conhecimento. Embora aqueles voltados especialmente ao diagnóstico e à
proposição de soluções para as questões urbanas estejam de modo mais freqüente
ligados ao urbanismo, o urbano tem preocupado e ocupado amplamente outros
saberes, sobretudo entre as chamadas ciências humanas, como a história, a
sociologia, a geografia, a antropologia, a filosofia, entre outras. Pelo
fascínio e temores que desperta, pelas forças e tensões que aglutina, pelos
desafios e possibilidades que reitera, a cidade tem mobilizado amplas energias
para sua compreensão e avaliação, desde a conformação dos agrupamentos urbanos
mais densos e complexos.
Indagações atuais e históricas sobre as condições de vida nas cidades
reafirmam a abrangência das questões e a multiplicidade de abordagens que,
afinal, constituem as realidades urbanas. Tendo exposto a relevância dos
estudos das questões urbanas, centralizaremos na cidade do Rio de Janeiro,
traçando um paralelo entre a Reforma Pereira Passos com a política do “bota
abaixo” e a política do atual prefeito Eduardo Paes (PMDB) apelidada de “choque
de ordem”.
Com a economia brasileira crescendo rapidamente, tornava-se importante à
agilidade das exportações, e a inserção cada vez maior do Brasil no modelo
capitalista internacional. Era de urgência agilizar a circulação de
mercadorias, que pendia devido às características do espaço colonial da cidade.
Tendo, então, a cidade ser cortada em todos os sentidos, afetando lugares e a
vida das pessoas.
Os governantes que se revezaram nos mais altos postos de comando do Rio
(prefeitura e governo do estado), implementaram políticas que, em resumo,
visavam afastar os pobres das regiões mais valorizadas da cidade. A atuação
destes governantes foi pautada pela criminalização e castração dos direitos
mais elementares da população de baixa renda, demonstrando a natureza de classe
do Estado brasileiro.
São notórias as consequências da gestão do prefeito Pereira Passos
(1902-1906), que, para realizar uma grande reforma urbanística no centro da
cidade do Rio, na intenção de torná-la mais atrativa aos investimentos
estrangeiros, realizou um verdadeiro “bota abaixo” na cidade, derrubando as moradias
das camadas populares, os chamados cortiços, comuns àquela região, expulsando
milhares de famílias pobres que se viram obrigadas a, de um dia para outro,
morar em lugares mais distantes de seus trabalhos ou sem qualquer planejamento
urbano. Este fato é considerado um dos grandes responsáveis pela Revolta da
Vacina, em 1904, que sacudiu a cidade por uma semana.
Dessa forma, não é invenção de Eduardo Paes a maneira lidar com a
população de baixa renda da cidade e os grandes projetos de reforma.
Entretanto, se esta política não é nova, ela é reeditada em um momento em que
se intensifica o ideal de “cidade empreendedora” que visa atrair investimentos
e tem como grande chamariz político e ideológico os chamados “grandes eventos”.
No contexto internacional, se intensifica a crise mundial, que tem gerado
amplos movimentos de massa, se fazendo ainda mais necessário o controle político
e ideológico da população economicamente menos favorecida, as assim chamadas
“classes perigosas”. Assim, não é só a remoção que está sendo posta em prática,
para este controle, a remoção de comunidades inteiras agora está associada à
construção dos muros em torno de algumas comunidades, e o grande projeto do
governo do Estado (parceiro da prefeitura) as UPPs.
Reforma Pereira Passos
“Francisco
Pereira Passos nasceu em 29 de agosto de 1836, no Município de Piraí, Estado do
Rio de Janeiro. Faleceu em 12 de março de 1913(...). ao completar quatorze anos
de idade, seguindo o costume da oligarquia rural, seu pai determinou que fosse
estudar na Corte, matriculando-o no Colégio São Pedro de Alcântara, no Rio de
Janeiro, no qual completou seus estudos preparatórios. Foram seus colegas de
turma Floriano Peixoto e Oswaldo Cruz. Em março de 1852, ingressou na Escola
Militar, futura Escola Politécnica do Rio de Janeiro, obtendo em 24 de dezembro
de 1856 o grau de Bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas, que lhe dava
direito ao diploma de Engenheiro Civil. Pereira Passos foi marcadamente
influenciado pelas idéias positivistas que ganharam força no Brasil após a II
Revolução Francesa.” (PINHEIRINHO, 2009).
No alvorecer do século XX, o Rio de Janeiro enfrentava graves problemas
sociais, decorrentes de seu crescimento rápido e desordenado. Com o fim do trabalho
escravo, a cidade passara a receber grandes contingentes de imigrantes europeus
e de ex-escravos, atraídos pelas oportunidades que ali se abriam ao trabalho
assalariado.
O incremento populacional e o aumento da pobreza agravaram a crise
habitacional, traço constante da vida urbana no Rio desde meados do século XIX.
O epicentro dessa crise era ainda, e cada vez mais, o centro do Rio – a Cidade
Velha e suas adjacências – onde se multiplicavam as habitações coletivas e onde
eclodiam as violentas epidemias de febre amarela, varíola, cólera-morbo que
conferiam à cidade fama internacional de porto sujo.
O primeiro plano urbanístico para o Rio de Janeiro foi elaborado entre
duas epidemias muito violentas (1873 e 1876), mas uma ação concreta nesse
sentido levaria cerca de três décadas para se realizar. Foi a estabilidade
político-econômica, a duras penas alcançada no governo Campos Sales
(1898-1902), que permitiu ao seu sucessor, Rodrigues Alves, promover, entre
1903 e 1906, o ambicioso programa de renovação urbana da capital. Tratada como
questão nacional, a reforma urbana sustentou-se no tripé saneamento – abertura
de ruas – embelezamento, tendo por finalidade última atrair capitais
estrangeiros para o país. Era preciso sanear a cidade e, para isso, as ruas
deveriam ser necessariamente mais largas, criando condições para arejar,
ventilar e iluminar melhor os prédios. Ruas mais largas estimulariam igualmente
a adoção de um padrão arquitetônico mais digno de uma cidade-capital.
Pereira Passos, apoiado pelos setores dominantes da sociedade, estabelece
seu plano e dando início ao “bota abaixo” começava a realizar as obras de
embelezamento e saneamento da cidade. Com as obras de demolição, vários prédios
que serviam de moradia às populações pobres (os cortiços), foram destruídos,
pois eram entendidos como sínteses da insalubridade e da violência, espaço da
barbárie. A reorganização do espaço urbano carioca, sob novas orientações
econômicas e ideológicas, não condizia com a presença de pobres na área central
da cidade. Afastar os pobres e não permiti-los entrar nas áreas nobres são
objetivos de todos os prefeitos até Pereira Passos. A cidade com a reforma
define quem deve ou não deve estar na área central.
Pereira Passos declarou guerra ao comércio dos quiosques e proibiu a
venda de produtos por ambulantes (nada diferente de hoje!). A feira livre,
inclusive, na cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1904, como um modelo de
inspiração européia, assentada em “modernos” princípios de beleza, disciplina e
higiene, modelo este que paulatinamente se difundiu e se consolidou pelo Brasil
urbano.
A população pobre que morava nas propriedades coletivas se via forçadas a
morar, grande parte, com outras famílias, a pagar aluguéis altos, ou se mudar
para os distantes subúrbios, já que eram poucas as moradias populares feitas
pelo governo em substituição às destruídas. Os que permaneceram mais próximo as
áreas centrais foram inchar as chamadas favelas, onde não havia qualquer
planejamento urbano ou intervenção estatal.
Pereira Passos ao eliminar as contradições do espaço urbano carioca
gerava novas contradições. Os morros do centro, até então poucos habitados,
passam rapidamente a serem habitados dando origem a diversas comunidades
carentes que até hoje existem. O escritor Lima Barreto, dá-nos uma descrição da
situação desses lugares: “Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças,
por toda a parte onde possa fincar quatro estacas de pau uni-las por paredes
duvidosas (...) Nelas há quase sempre uma bica para todos os habitantes e
nenhuma espécie de esgoto” (BARRETO,
1997).
Como podemos analisar, muitas das políticas historicamente implantadas
pelas classes dominantes visando manter a ordem social e preservar o sistema
são reeditadas buscando adaptar-se aos novos tempos, mas com modelos parecidos
como a exclusão e criminalização da pobreza. Movimentos de resistência popular
não raro acompanham consequentemente essas políticas. Nos episódios do “bota
abaixo” a Revolta da Vacina foi um desses movimentos e merece certo destaque.
“A
obrigatoriedade da vacina era garantida por uma rede de compulsão social. A
apresentação dos comprovantes de vacinação passaria a ser condição para
matrículas em escolas, admissões em empresas e oficinas, casamentos e outras
tantas atividades, de maneira que a vida social daquele que se recusasse a ser vacinado
tornar-se-ia impossível.” (SANTOS, 2009).
Portanto, a vacina serviu também como uma das várias medidas para
“disciplinar” e expulsar a população mais pobre das áreas centrais. A Revolta
da Vacina foi o ápice das insatisfações da população quanto às políticas que
privilegiavam as classes mais abastadas. Em poucos dias, vários bairros do Rio
de Janeiro se tornaram verdadeiros campos de batalha. A polícia foi usada como
medida de enfrentamento, para conter os avanços populares.
“Mais que um levante dos cariocas contra as medidas sanitárias do Estado,
a Revolta da Vacina simboliza a resistência popular frente à truculência que
historicamente permeia o contato do poder público com o povo.” (SANTOS, 2009)
No século XXI, com o prefeito Eduardo Paes, a lógica é a mesma, mas com
roupagem diferente. A necessidade de atender os interesses de uma camada social
e a ideia é de que a pobreza existe porque não há esforço individual suficiente
das pessoas e não que a lógica do sistema é excludente.
Gestão do prefeito Eduardo Paes e a lógica da cidade
empreendedora
Desde a metade da década de 1990, com a gestão do prefeito César Maia, o
Rio de Janeiro vem vivenciando um avanço do modelo neoliberal de gestão
municipal que implementa a ideia de “cidade empreendedorista” (MASCARENHAS,
2012). Esse modelo está dentro de um quadro geral de reestruturação
capitalista.
“Tudo isso resultou na necessidade das gestões urbanas
buscarem de capitais insumos para realizar suas novas funções (no contexto da
reestruturação global), e assim passaram a competir entre si, buscando
maximizar suas potencialidades para produzirem cidades atrativas ao capital,
adotando o empreendedorismo como modelo de gestão.” (MASCARENHAS, 2012)
Além de tudo despolitiza as questões referentes ao urbanismo.
Em 2008 foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro, pelo PMDB,
Eduardo Paes, aprofundando esse processo e o levando ao ápice. Já nos primeiros
meses de seu mandato percebemos qual seria a marca principal que essa gestão
pretende deixar na cidade: a ordem pública e a atração de investimentos
privilegiando os interesses privados.
Em sua campanha Eduardo Paes frisou a importância da ordem urbana.
Inicia-se então a política do chamado “choque de ordem”, que consiste
basicamente em retirar moradores de rua,
ambulantes, crianças abandonadas, motoristas infratores e sem documentação,
entre outras irregularidades. Em concordância com a essa política, a prefeitura
tem grandes projetos de revitalização, principalmente do centro do Rio, que
terá como marca principal o projeto do “porto maravilha”, uma grande reforma da
área portuária da cidade objetivando dar impulso ao turismo e atração de mais
investimentos.
Essa política foi ainda mais alavancada pela
escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, além da Copa
do Mundo de 2014. Os chamados grandes eventos viabilizam do ponto de vista
empresarial o projeto de cidade empreendedora dando grande relevância ao
aspecto ideológico.
“Estamos diante de um fenômeno mais amplo e complexo, que
extrapola o âmbito do esporte e conjuga a promoção de um espetáculo global a
outro bem menos reluzente: o espetáculo da alienação, conforme sugeriu Gui
Debord (1967)”.
É possível perceber, portanto, que o
paralelo histórico entre as políticas urbanas do atual prefeito Eduardo Paes e
aquelas implementadas no início do século XX por Pereira Passos. Não devemos
cair, é claro, no anacronismo, mas analisando similaridades e diferenças
podemos entender melhor a lógica dessa política no campo historiográfico e
social (que não são distintos).
Um paralelo entre o “choque de ordem” e as “Reformas
Pereira Passos”
“RIO - Por
pouco, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, não inaugurou a primeira fase das obras
da Zona Portuária, no dia 1º, fantasiado — com roupas de época — de ex-prefeito
Francisco Pereira Passos. A ideia era incorporar, de forma teatral, o espírito
do responsável pela maior reforma urbana já vista no Rio. Aconselhado por
assessores e a poucos dias do início da campanha eleitoral, Paes, candidato à
reeleição, desistiu da ideia. Coube a um ator a tarefa de representar o
ex-prefeito.” (O GLOBO, 2012)
A notícia acima tirada do portal do jornal o
globo evidencia de forma caricato as questões levantadas por esse trabalho. Com
uma reconstrução de memória acrítica da história, Eduardo Paes deixa claro que
pretende entrar na história da cidade, assim como fez Pereira Passos.
Esse objetivo tem sua concretude. Dentro de
suas próprias conjunturas internacional e nacional, ambos os prefeitos buscavam
inserir o Rio de Janeiro no cenário político e econômico mundial, beneficiar
interesses privados e para isso contavam com amplo apoio das classes dominantes
e dos meios de comunicação.
Iremos analisar agora uma entrevista feita assim que o
prefeito foi eleito pela primeira vez:
“(...)O GLOBO: A
ordem pública será a marca da sua gestão?
Paes: Vai ser uma das
marcas, certamente.
O GLOBO: O senhor viu a
primeira página do GLOBO com as suas promessas, no dia seguinte à eleição?
Pretende cumprir todas as promessas de campanha?
(...)
O GLOBO:O senhor vai ter
indicações dos partidos aliados para cargos...
Paes: A escolha do meu
secretariado é minha, de mais ninguém. Posso conversar, ouvir opiniões,
sugestões, mas a escolha é minha. Agora, eu pretendo governar com um arco de
alianças. Pretendo conversar com o PT, o PSB, o PCdoB. Há áreas que acho que devem ser essencialmente técnicas, não devem ter
políticos: Fazenda, Saúde, Educação, são áreas em que botar político não é
bom.
O GLOBO:O senhor tem um
técnico na Saúde, tem dito que na Fazenda e na Educação vão ser técnicos, e
Obras. Seriam só essas ou vai ter mais alguma? Administração? Transporte?
Paes: Não sei. Às vezes
até no Transporte você precisa de alguma mais articulada do que técnica por
causa dos desafios ali. No transporte, penso num nome mais... Eu adoraria um
Eduardo Paes para ser secretário de Transportes, que minha modéstia não me
deixe errar.
O GLOBO: Urbanismo?
Paes: Técnico. Ali não tem como.
Da entrevista é interessante percebermos a preocupação do jornal quanto a
quem ocupará as secretárias do novo governo, se serão cargos políticos ou
técnicos. Eduardo Paes diz que não nega os cargos “políticos”, porém concorda
que certos postos devem ser ocupados por técnicos especialistas, que não
estejam vinculados com política. Saúde, educação, fazenda e urbanismo são
frisados por ele como secretárias basicamente técnicas. Quando ele diz que o
urbanismo é um quadro técnico “Ali não tem como.” (PAES, 2008) segue a risca a
doutrina neoliberal de despolitização da cidade, atendendo aos interesses do
grande capital.
Quando voltamos para o início do século passado e analisamos os critérios
que levaram a nomeação do Pereira Passos para a prefeitura do Rio encontramos
diversas similaridades. À Pereira Passos, que era engenheiro e, antes de ser
prefeito, havia trabalhado diversas vezes com a questão do ordenamento urbano,
foi dada a missão de modernizar a capital da república, acabando com os
problemas que atravancavam o desenvolvimento da cidade e do país. Essa
confiança se deu basicamente devido a competência técnica do engenheiro-prefeito.
Essa escolha foi saudada pela classe dominante e pela imprensa. No artigo
escrito na revista “Rio de Janeiro”, “O ‘Bota-baixo’ revisado: O executivo municipal
e as reformas urbanos no Rio de Janeiro”, Ângela Molins e Marly Silva da Motta
dizem que “A nomeação de Pereira Passos, bem como os poderes a ele concedidos
pela lei 939, foram bem recebidos pela imprensa (...). Os argumentos principais
a favor da ‘ditadura do prefeito’ eram sua competência e seu caráter apolítico” (MOTTA E MOLINS, 2003).
Percebe-se, portanto, que a grande imprensa, que tem vínculos estreitos
com a classe dominante, mantém sua preocupação na necessidade do caráter
despolitizado de alguns cargos. Essa é uma forma que a elite dominante sempre
usou para esvaziar o debate a respeito de questões importantes. Como é possível
dizer que as reformas urbanas do Pereira Passos não tinham um caráter político?
Assim como não é possível dizer que não é político o “choque de ordem” do
Eduardo Paes. Para desconstruir essa
visão, volto a recorrer ao artigo da Motta e da Molins:
“No Rio de janeiro, havia excesso de política:
fazia-se política no catete, no Congresso, na prefeitura, no Conselho
Municipal. Fazia-se política nos sindicatos, nos partidos. E fazia-se política nas ruas. Por isso, um dos principais
objetivos declarados da (...) “ditadura” do prefeito Pereira Passos, era livrar
o Rio de janeiro do jogo pérfido da política, o que implicava desarticular a
elite carioca” (MOTTA E MOLINS, 2003).
Mais do que desarticular a elite local, a política do presidente
Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos, uma política que já se desenhava
desde a proclamação da república, era desarticular essa “política nas ruas”.
Sidney Chalhoub elucida bem essa questão, quando diz que é
“possível
sugerir que um dos sentidos da proclamação da Republica foi tentar pôr um dique
e anular, ou pelo menos disciplinar, a influência cada vez mais decisiva que as
agitações nas ruas da Corte estavam desempenhando nos rumos que tomavam os
conflitos no interior da classe dominante.” (CHALHOUB, 1991).
O mesmo se pode aplicar hoje, na política de “choque de ordem” do Paes (guardando,
é claro, as devidas diferenças dadas pelos contextos históricos distintos). O
projeto da prefeitura não é apenas revitalizar a cidade e fazer dela ponto de
atração turística e de investimentos. Existe um caráter ideológico nessa
política e este é o da criminalização da pobreza. O bom relacionamento com o
governador Sérgio Cabral, do PMDB, também articula essa política com a doutrina
de segurança pública que se baseia na repressão policial violenta e a
instalação da ocupação permanente, no que ficou conhecido como Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) que são instaladas nas favelas da Zona Sul e nas
áreas de grande circulação de mercadoria, como o caso do morro do Alemão,
próximo à Avenida Brasil.
Rose Barboza diz no site da Revista Fórum:
“o
‘Choque da Ordem’ busca garantir a ‘ordem pública’ baseando-se na culpabilização
da população em situação de rua supondo, de antemão, que essa vá recorrer a
meios ilícitos para se manter. Assim como na extinta ‘lei da vadiagem’,
penaliza-se a suposição e não um delito em si.” (BARBOZA, 2009).
Esta, não é uma política nova. Chalhoub no artigo já citado acima, fala
do medo que a cidade formal tinha da “cidade esconderijo”, onde os negros
libertos, pobres e etc poderiam se abrigar. Isso explica, em parte, as ações
dos governos no inicio do século contra essa “cidade esconderijo”. Zuenir
Ventura, no livro “Cidade Partida”, fala da existência, hoje, de uma “cidade
legal” e uma “cidade informal”, onde estaria a classe trabalhadora mais
pauperizada da sociedade e é onde o poder público não consegue mais exercer
controle.
Essa visão da “cidade partida” de Zuenir Ventura é interessante para
percebermos que, ainda hoje, existe uma “cidade esconderijo”, utilizando as
palavras do Chalhoub, que a cidade formalmente constituída teme. Sendo assim,
tanto quanto as reformas do prefeito “bota-baixo”, como o “choque de ordem”
articulado com as políticas do governo do estado fazem parte de um projeto de
criminalização do pobre que, apoiados pela grande mídia, responde a uma visão
preconceituosa da elite branca nacional a respeito das classes inferiores,
vistos como potencialmente perigosas.
Além do mais, esta criminalização da pobreza se articula perfeitamente
com os grandes projetos de atração de capital e valorização de certas áreas da
cidade para benefício de grupos privados, tendo como justificativa ideológica o
“fazer bonito” perante o mundo na Copa do Mundo de 2014 e nas olimpíadas de
2016.
Alguns exemplos dessas políticas
conjugadas podemos encontrar na revitalização da área portuária, no projeto do
“Porto Maravilha” levou não só a remoção de moradores e moradores de rua,
associada à destombamentos de prédios históricos para melhor se adaptar às
demandas do capital, valorizando a região e ajudando a especulação imobiliária.
O entrono do estádio histórico do Maracanã que foi totalmente desfigurado em
sua arquitetura original, outros prédios históricos serão derrubados, com a
remoção da “Aldeia Maracanã” uma ocupação de uma etnia indígena onde era o
Museu do Índio (1953-1978), para a construção de restaurantes e estacionamento.
A comunidade da Vila Autódromo em Jacarepaguá também será removida para a
construção da Vila Olímpica, no que a prefeitura classificou como essencial
para a realização dos jogos. Segue agora um trecho tirado do blog da Vila
Autódromo na internet:
“A Prefeitura mentiu novamente ao dizer que a
remoção é fundamental para os Jogos Olímpicos: o projeto vencedor de concurso
internacional para o Parque Olímpico manteve a comunidade. Em mais uma
tentativa, apresentou um projeto viário, alterando a rota da Transcarioca já em
obras (e com várias irregularidades no licenciamento ambiental), somente para
passar por cima da comunidade. Com a mudança constante de pretextos, a
Prefeitura pretende legitimar a remoção de 500 famílias, e a cessão, para o
consórcio privado Odebrecht - Andrade Gutierres - Carvalho Hosken, de uma área
de 1,18 milhões de m², dos quais 75% serão destinados à construção de
condomínios de alta renda.” (2012)
A relação de Pereira Passos com o setor privado não era tão diferente:
“A
qualificação de Pereira Passos para o cargo de prefeito de relacionou ao fato de
ele ter ocupado a direção executiva de uma importante empresa (...) pôde assim
se situar na confluência entre o poder público e o privado, propiciando
parcerias e indicando oportunidades de negócios” (MOTTA E MOLINS, 2003).
Fica assim evidente que haviam aí outros interesses envolvidos. O projeto
de modernização e desenvolvimento da cidade e do país, sonhado por Rodrigo
Alves, Pereira Passos e por parte da elite nacional, é um projeto político que
encontrou resistência não só entre as classes populares, como em parcela da
classe dominante.
Do mesmo jeito, as reformas idealizadas pelo prefeito Eduardo Paes, fazem
parte de um projeto político. Não há como separarmos o econômico do político. O
que está em jogo é uma concepção que beneficia o capital financeiro e o capital
imobiliário, enxergando nas classes pobres, apenas obstáculos ao
desenvolvimento, que devem ser removidos. Outros modelos de revitalização podem
ser e são pensados. Projetos que revitalizam zonas, principalmente do centro da
cidade, porém com parâmetros distintos do projeto oficial da prefeitura. A
candidatura do deputado estadual Marcelo Freixo pelo PSOL nas eleições para
prefeito em 2012 foi, em parte, uma confluência de amplos setores da sociedade
insatisfeitos com essa forma de fazer política e pensar a cidade, obtendo cerca
de um milhão de votos.
Resistência ontem e hoje
Buscamos apontar as similaridades que aproximam a política urbana do
início do século XX de Pereira Passos, e a política urbana do início do século
XXI de Eduardo Paes. Agora, ao nos concentrarmos nas diferenças, uma delas em
particular é a mais gritante: a resistência das camadas populares a essa
política.
As políticas de reforma urbana aplicadas por Pereira Passos não se limitaram
à abertura de grandes avenidas no centro da cidade, implicando na remoção de
inúmeros cortiços onde parte da população pobre vivia. Como sabemos a questão
da higienização também foi um forte marco de sua administração, apoiado pelo
governo federal. Ao lado do sanitarista Osvaldo Cruz, elaboraram um grande
plano de vacinação obrigatória com o objetivo de erradicar inúmeras doenças que
afligiam a cidade do Rio.
É interessante vermos que o mesmo preconceito em relação às classes
pobres, observados nas reformas urbanas, pode ser encontrado na questão da
vacina obrigatória. Mesmo sendo algo que, teoricamente, traria benefício à
população, a aplicação da vacina era feita sem nenhum tipo de conscientização e
de forma violenta. O povo não precisava saber do que se tratava, ele devia
apenas aceitar que o que o governo faz é o melhor para ele. O povo como agente
político é potencialmente perigoso e por isso deve ser mantido passivo e
desarticulado.
O tratamento que os agentes sanitários davam à população durante a
vacinação, somado a política de reformas gerou uma grande revolta popular que
levou as massas oprimidas às ruas em confrontos diretos e violentos. A
conhecida Revolta da Vacina trouxe o povo para a ação política e no final
conseguiu a principal reivindicação dos revoltosos, cessar a vacinação
obrigatória.
Historicamente quando o Estado, representante da classe dominante, passa
a aplicar uma política direta e truculenta de coerção e repressão das camadas
mais pobres da população, ocorrem movimentos de resistência popular como o que
vimos na Revolta da Vacina. Porém, hoje em dia, apesar de alguns atos isolados,
de manifestações daqueles mais diretamente atingidos por esse tipo de política,
não há um grande movimento de contestação que uma os setores da classe
trabalhadora oprimida contra as reformas elitistas e anti democráticas do
governo. O resultado disso é que na eleição de 2012, o atual prefeito Eduardo
Paes foi reeleito com 64,60% dos votos contra 28,15% do deputado estadual
Marcelo Freixo (PSOL) e 0,15% do Cyro Garcia (PSTU), os candidatos que mais
abertamente contrapuseram a política do atual prefeito.
Uma das razões que podemos encontrar é o fato que hoje o aparato que
existe de manipulação e alienação da população é muito mais bem elaborado.
Concordamos que, tanto na época de Pereira Passos, quanto hoje, a classe
trabalhadora mais pobre é vista com preconceito, como um perigo em potencial e
por isso se aplicam políticas de criminalização e extermínio da pobreza. Porém,
em 1903, o prefeito do Rio de Janeiro era nomeado diretamente pelo presidente
da república, nas próprias eleições presidências, o nível de participação era
muito baixo devido à proibição ao voto dos analfabetos. José Murilo disse em
seu livro “Os Bestializados”: “a exigência de alfabetização, introduzida em
1881, era barreira suficiente para impedir a expansão do eleitorado” (MURILO,
1987). Portanto a classe dominante, ao enxergar o povo como ignorante, e por,
teoricamente, não precisar dele para os assuntos políticos maiores, não faziam
um grande esforço de controle cultural dessa classe. Isso explica também a
violência aplicada na vacinação obrigatória.
Hoje, apesar da crença de que o povo é ignorante ainda persistir, isto
não é defendido em
público. Devido aos trâmites da democracia eleitoral
burguesa, para ser prefeito ou para qualquer cargo no Estado, você precisa
passar por uma eleição. “Ser prefeito do Rio significa, agora, ter passado pelo
difícil e desgastante teste das urnas e conquistado milhões de votos” (MOTTA E
MOLINS, 2003). Portanto para poder aplicar essa política de criminalização da
pobreza precisa-se ter o voto do pobre. Assim, o papel da grande mídia se
amplia. É através da imprensa tradicional que a classe dominante produz um
esforço de legitimação dessa política. Presente nos jornais, escritos e
televisionados, nas novelas, etc a mídia vende um modelo de sociedade baseado
no individualismo e no consumo. Isto somado ao refluxo dos movimentos sociais,
que vivemos desde a década de 1990 e no Brasil em particular e no mundo em
geral, a cooptação de grande parte do movimento social organizado, após a
eleição do Lula (O qual o prefeito Eduardo Paes é um importante aliado), pode
explicar a falta de um grande movimento de resistência popular.
Nesse sentido, a realização dos grandes eventos vai como uma luva para esse
projeto. Durante sua campanha de reeleição um dos motes da campanha foi o
slogan “O Rio voltou a sorrir.” passando a ideia de que agora o cidadão carioca
pode ter orgulho de sua cidade que se lança como nunca antes no cenário
internacional. Costumavam também passar a ideia de que era preciso reeleger
Paes para que o projeto olímpico desse certo. Com grande ajuda da imprensa, a
prefeitura construiu um sentimento patriota e de orgulho nos cariocas. Na
ocasião da visita do Comitê Olímpico Internacional para avaliar a viabilidade
da candidatura do Rio de Janeiro como sede dos jogos olímpicos o
“Comitê
Organizador dos Jogos (Co-Rio), cuidou também da atmosfera cultural da cidade,
através de ampla campanha publicitária. Inúmeros cartazes enaltecendo o valor dos
Jogos Olímpicos e conclamando a população a vestir-se de verde e amarelo,
porta-se de forma hospitaleira e civilizada nas vias públicas, enfim,
transparecer abertamente aos visitantes nosso patriotismo, nosso orgulho, nossa
alegria, nosso profundo desejo de se sediar tão prestigiado evento, enfim,
nosso declarado ‘espírito olímpico’”. (MASCARENHAS, 2012)
Conclusão
Volta e meia, a questão urbana volta a ser tema principal do debate na
sociedade. A política do “choque de ordem” e a preparação para os grandes
eventos trouxe a tona velhas questões que nunca foram resolvidas, apesar do
esforço de inúmeros outros prefeitos.
Nesse trabalho procuramos mostrar que a política urbana do prefeito
eleito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, não tem muita coisa de novo. Tentando
ao máximo não cair em anacronismos, podemos concluir que, mesmo que o contexto
histórico tenha mudado muito e a classe dominante hoje não é a mesma que a
classe dominante de cem anos atrás, é evidente que no tratamento as classes
populares, a elite nacional é ainda carregada de preconceitos. Enxergam no
pobre um perigo em potencial e por isso vemos a aplicação de uma política de
criminalização e alienação da pobreza exemplificada não só pelo “choque de
ordem”, como também com a política de segurança pública do governo estadual,
aliado com o federal e na exaustiva propaganda midiática.
Nos primeiros anos da república, falava-se abertamente que o pobre e
principalmente o negro recém-liberto, não tinham capacidade de fazer política.
Isso é proveniente de um claro medo da força em potencial que essa população
unida pode ter. Hoje já não é possível ser tão sincero. Os mecanismos de
descriminação do povo são mais sutis e aparece, por exemplo, nos telejornais,
quando um ato popular contra a presença do exército na favela, é desqualificado
como atitudes de vandalismo inconsequente.
A discriminação, a política de criminalização e extermínio do pobre, e
uma política econômica voltada para os interesses do grande capital, são
bastante semelhantes, seja no início do século XX, seja hoje. Porém o
capitalismo se desenvolveu e aprendeu com seus próprios erros do passado. A
classe dominante, mesmo que veja o povo como ignorante e sem cultura, sabe da
força em potencial que está ali presente e desenvolveu diversos mecanismos de
controle e alienação.
Serão sempre válidas, para nós futuros historiadores e para a sociedade
em geral, essas analises comparativas do que ocorreu no passado, com o que
acontece hoje, pois assim, é possível enxergar o quanto uma política, que se
apresenta como nova, pode ser carregada de uma lógica preconceituosa e
elitista, muito similar à de cem anos atrás.
Este trabalho não se diz respeito somente ao Rio de Janeiro e seus
cidadãos, mesmo que esse tenha sido o foco. Todo morador de uma grande ou média
cidade pode sentir na pele os efeitos dessa política de cidade empreendedora e
neoliberal. Esperamos assim contribuir para o debate historiográfico e social,
além é claro, chamarmos à conscientização e à ação contra um modelo de cidade
visto por parcela da sociedade como excludente e antidemocrático.
[adendo posterior] Apesar de ter concluído
o trabalho se perguntando porque não havia uma reação popular como na Revolta
da Vacina, vivenciamos o que vou chamar por falta de um nome melhor de “Jornadas
de Junho”. Uma série de grandes protestos no Brasil todo, que se estendeu por
meses no Rio de Janeiro e é um reflexo do impacto dessa política de Paes de
Cabral (governos do PMDB/PT) para a cidade do Rio de Janeiro.
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