sábado, 23 de novembro de 2013

A Reforma Pereira Passos e a Política de Eduardo Paes.


NITERÓI
2012



Introdução

Embrenhar-se no estudo de questões urbanas impõe certo esforço em lidar com aspectos complexos e abrangentes. Não apenas a técnica e o espaço, mas as questões sociais, culturais e políticas preocupam quem assume tal esforço, visto estarem todas essas dimensões na própria essência da questão urbana.
O debate acadêmico sobre a cidade - materialidade e representação historicamente constituída - tem sido assíduo em diversos campos do conhecimento. Embora aqueles voltados especialmente ao diagnóstico e à proposição de soluções para as questões urbanas estejam de modo mais freqüente ligados ao urbanismo, o urbano tem preocupado e ocupado amplamente outros saberes, sobretudo entre as chamadas ciências humanas, como a história, a sociologia, a geografia, a antropologia, a filosofia, entre outras. Pelo fascínio e temores que desperta, pelas forças e tensões que aglutina, pelos desafios e possibilidades que reitera, a cidade tem mobilizado amplas energias para sua compreensão e avaliação, desde a conformação dos agrupamentos urbanos mais densos e complexos.
Indagações atuais e históricas sobre as condições de vida nas cidades reafirmam a abrangência das questões e a multiplicidade de abordagens que, afinal, constituem as realidades urbanas. Tendo exposto a relevância dos estudos das questões urbanas, centralizaremos na cidade do Rio de Janeiro, traçando um paralelo entre a Reforma Pereira Passos com a política do “bota abaixo” e a política do atual prefeito Eduardo Paes (PMDB) apelidada de “choque de ordem”.
O Rio de Janeiro da primeira década do século XX apresentava-se como uma capital de aparentes contradições. A reforma empreendida pelo prefeito, do então Distrito Federal, Francisco Pereira Passos, visava eliminar, sobretudo, essas contradições. Era preciso a cidade assumir feições novas, de acordo com as determinações econômicas e ideológicas do momento.
Com a economia brasileira crescendo rapidamente, tornava-se importante à agilidade das exportações, e a inserção cada vez maior do Brasil no modelo capitalista internacional. Era de urgência agilizar a circulação de mercadorias, que pendia devido às características do espaço colonial da cidade. Tendo, então, a cidade ser cortada em todos os sentidos, afetando lugares e a vida das pessoas.
Os governantes que se revezaram nos mais altos postos de comando do Rio (prefeitura e governo do estado), implementaram políticas que, em resumo, visavam afastar os pobres das regiões mais valorizadas da cidade. A atuação destes governantes foi pautada pela criminalização e castração dos direitos mais elementares da população de baixa renda, demonstrando a natureza de classe do Estado brasileiro.
São notórias as consequências da gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906), que, para realizar uma grande reforma urbanística no centro da cidade do Rio, na intenção de torná-la mais atrativa aos investimentos estrangeiros, realizou um verdadeiro “bota abaixo” na cidade, derrubando as moradias das camadas populares, os chamados cortiços, comuns àquela região, expulsando milhares de famílias pobres que se viram obrigadas a, de um dia para outro, morar em lugares mais distantes de seus trabalhos ou sem qualquer planejamento urbano. Este fato é considerado um dos grandes responsáveis pela Revolta da Vacina, em 1904, que sacudiu a cidade por uma semana.
Dessa forma, não é invenção de Eduardo Paes a maneira lidar com a população de baixa renda da cidade e os grandes projetos de reforma. Entretanto, se esta política não é nova, ela é reeditada em um momento em que se intensifica o ideal de “cidade empreendedora” que visa atrair investimentos e tem como grande chamariz político e ideológico os chamados “grandes eventos”. No contexto internacional, se intensifica a crise mundial, que tem gerado amplos movimentos de massa, se fazendo ainda mais necessário o controle político e ideológico da população economicamente menos favorecida, as assim chamadas “classes perigosas”. Assim, não é só a remoção que está sendo posta em prática, para este controle, a remoção de comunidades inteiras agora está associada à construção dos muros em torno de algumas comunidades, e o grande projeto do governo do Estado (parceiro da prefeitura) as UPPs.


Reforma Pereira Passos

“Francisco Pereira Passos nasceu em 29 de agosto de 1836, no Município de Piraí, Estado do Rio de Janeiro. Faleceu em 12 de março de 1913(...). ao completar quatorze anos de idade, seguindo o costume da oligarquia rural, seu pai determinou que fosse estudar na Corte, matriculando-o no Colégio São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro, no qual completou seus estudos preparatórios. Foram seus colegas de turma Floriano Peixoto e Oswaldo Cruz. Em março de 1852, ingressou na Escola Militar, futura Escola Politécnica do Rio de Janeiro, obtendo em 24 de dezembro de 1856 o grau de Bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas, que lhe dava direito ao diploma de Engenheiro Civil. Pereira Passos foi marcadamente influenciado pelas idéias positivistas que ganharam força no Brasil após a II Revolução Francesa.” (PINHEIRINHO, 2009).

No alvorecer do século XX, o Rio de Janeiro enfrentava graves problemas sociais, decorrentes de seu crescimento rápido e desordenado. Com o fim do trabalho escravo, a cidade passara a receber grandes contingentes de imigrantes europeus e de ex-escravos, atraídos pelas oportunidades que ali se abriam ao trabalho assalariado.
O incremento populacional e o aumento da pobreza agravaram a crise habitacional, traço constante da vida urbana no Rio desde meados do século XIX. O epicentro dessa crise era ainda, e cada vez mais, o centro do Rio – a Cidade Velha e suas adjacências – onde se multiplicavam as habitações coletivas e onde eclodiam as violentas epidemias de febre amarela, varíola, cólera-morbo que conferiam à cidade fama internacional de porto sujo.
O primeiro plano urbanístico para o Rio de Janeiro foi elaborado entre duas epidemias muito violentas (1873 e 1876), mas uma ação concreta nesse sentido levaria cerca de três décadas para se realizar. Foi a estabilidade político-econômica, a duras penas alcançada no governo Campos Sales (1898-1902), que permitiu ao seu sucessor, Rodrigues Alves, promover, entre 1903 e 1906, o ambicioso programa de renovação urbana da capital. Tratada como questão nacional, a reforma urbana sustentou-se no tripé saneamento – abertura de ruas – embelezamento, tendo por finalidade última atrair capitais estrangeiros para o país. Era preciso sanear a cidade e, para isso, as ruas deveriam ser necessariamente mais largas, criando condições para arejar, ventilar e iluminar melhor os prédios. Ruas mais largas estimulariam igualmente a adoção de um padrão arquitetônico mais digno de uma cidade-capital.
Pereira Passos, apoiado pelos setores dominantes da sociedade, estabelece seu plano e dando início ao “bota abaixo” começava a realizar as obras de embelezamento e saneamento da cidade. Com as obras de demolição, vários prédios que serviam de moradia às populações pobres (os cortiços), foram destruídos, pois eram entendidos como sínteses da insalubridade e da violência, espaço da barbárie. A reorganização do espaço urbano carioca, sob novas orientações econômicas e ideológicas, não condizia com a presença de pobres na área central da cidade. Afastar os pobres e não permiti-los entrar nas áreas nobres são objetivos de todos os prefeitos até Pereira Passos. A cidade com a reforma define quem deve ou não deve estar na área central.
Pereira Passos declarou guerra ao comércio dos quiosques e proibiu a venda de produtos por ambulantes (nada diferente de hoje!). A feira livre, inclusive, na cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1904, como um modelo de inspiração européia, assentada em “modernos” princípios de beleza, disciplina e higiene, modelo este que paulatinamente se difundiu e se consolidou pelo Brasil urbano.
A população pobre que morava nas propriedades coletivas se via forçadas a morar, grande parte, com outras famílias, a pagar aluguéis altos, ou se mudar para os distantes subúrbios, já que eram poucas as moradias populares feitas pelo governo em substituição às destruídas. Os que permaneceram mais próximo as áreas centrais foram inchar as chamadas favelas, onde não havia qualquer planejamento urbano ou intervenção estatal.
Pereira Passos ao eliminar as contradições do espaço urbano carioca gerava novas contradições. Os morros do centro, até então poucos habitados, passam rapidamente a serem habitados dando origem a diversas comunidades carentes que até hoje existem. O escritor Lima Barreto, dá-nos uma descrição da situação desses lugares: “Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde possa fincar quatro estacas de pau uni-las por paredes duvidosas (...) Nelas há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto” (BARRETO, 1997).
Como podemos analisar, muitas das políticas historicamente implantadas pelas classes dominantes visando manter a ordem social e preservar o sistema são reeditadas buscando adaptar-se aos novos tempos, mas com modelos parecidos como a exclusão e criminalização da pobreza. Movimentos de resistência popular não raro acompanham consequentemente essas políticas. Nos episódios do “bota abaixo” a Revolta da Vacina foi um desses movimentos e merece certo destaque.
“A obrigatoriedade da vacina era garantida por uma rede de compulsão social. A apresentação dos comprovantes de vacinação passaria a ser condição para matrículas em escolas, admissões em empresas e oficinas, casamentos e outras tantas atividades, de maneira que a vida social daquele que se recusasse a ser vacinado tornar-se-ia impossível.” (SANTOS, 2009).
Portanto, a vacina serviu também como uma das várias medidas para “disciplinar” e expulsar a população mais pobre das áreas centrais. A Revolta da Vacina foi o ápice das insatisfações da população quanto às políticas que privilegiavam as classes mais abastadas. Em poucos dias, vários bairros do Rio de Janeiro se tornaram verdadeiros campos de batalha. A polícia foi usada como medida de enfrentamento, para conter os avanços populares.
“Mais que um levante dos cariocas contra as medidas sanitárias do Estado, a Revolta da Vacina simboliza a resistência popular frente à truculência que historicamente permeia o contato do poder público com o povo.” (SANTOS, 2009)
No século XXI, com o prefeito Eduardo Paes, a lógica é a mesma, mas com roupagem diferente. A necessidade de atender os interesses de uma camada social e a ideia é de que a pobreza existe porque não há esforço individual suficiente das pessoas e não que a lógica do sistema é excludente.

Gestão do prefeito Eduardo Paes e a lógica da cidade empreendedora

Desde a metade da década de 1990, com a gestão do prefeito César Maia, o Rio de Janeiro vem vivenciando um avanço do modelo neoliberal de gestão municipal que implementa a ideia de “cidade empreendedorista” (MASCARENHAS, 2012). Esse modelo está dentro de um quadro geral de reestruturação capitalista.
“Tudo isso resultou na necessidade das gestões urbanas buscarem de capitais insumos para realizar suas novas funções (no contexto da reestruturação global), e assim passaram a competir entre si, buscando maximizar suas potencialidades para produzirem cidades atrativas ao capital, adotando o empreendedorismo como modelo de gestão.” (MASCARENHAS, 2012)
Além de tudo despolitiza as questões referentes ao urbanismo.
Em 2008 foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro, pelo PMDB, Eduardo Paes, aprofundando esse processo e o levando ao ápice. Já nos primeiros meses de seu mandato percebemos qual seria a marca principal que essa gestão pretende deixar na cidade: a ordem pública e a atração de investimentos privilegiando os interesses privados.
Em sua campanha Eduardo Paes frisou a importância da ordem urbana. Inicia-se então a política do chamado “choque de ordem”, que consiste basicamente em retirar moradores de rua, ambulantes, crianças abandonadas, motoristas infratores e sem documentação, entre outras irregularidades. Em concordância com a essa política, a prefeitura tem grandes projetos de revitalização, principalmente do centro do Rio, que terá como marca principal o projeto do “porto maravilha”, uma grande reforma da área portuária da cidade objetivando dar impulso ao turismo e atração de mais investimentos.
Essa política foi ainda mais alavancada pela escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, além da Copa do Mundo de 2014. Os chamados grandes eventos viabilizam do ponto de vista empresarial o projeto de cidade empreendedora dando grande relevância ao aspecto ideológico.
 “Estamos diante de um fenômeno mais amplo e complexo, que extrapola o âmbito do esporte e conjuga a promoção de um espetáculo global a outro bem menos reluzente: o espetáculo da alienação, conforme sugeriu Gui Debord (1967)”.   
É possível perceber, portanto, que o paralelo histórico entre as políticas urbanas do atual prefeito Eduardo Paes e aquelas implementadas no início do século XX por Pereira Passos. Não devemos cair, é claro, no anacronismo, mas analisando similaridades e diferenças podemos entender melhor a lógica dessa política no campo historiográfico e social (que não são distintos).

Um paralelo entre o “choque de ordem” e as “Reformas Pereira Passos”

“RIO - Por pouco, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, não inaugurou a primeira fase das obras da Zona Portuária, no dia 1º, fantasiado — com roupas de época — de ex-prefeito Francisco Pereira Passos. A ideia era incorporar, de forma teatral, o espírito do responsável pela maior reforma urbana já vista no Rio. Aconselhado por assessores e a poucos dias do início da campanha eleitoral, Paes, candidato à reeleição, desistiu da ideia. Coube a um ator a tarefa de representar o ex-prefeito.” (O GLOBO, 2012)

A notícia acima tirada do portal do jornal o globo evidencia de forma caricato as questões levantadas por esse trabalho. Com uma reconstrução de memória acrítica da história, Eduardo Paes deixa claro que pretende entrar na história da cidade, assim como fez Pereira Passos.
Esse objetivo tem sua concretude. Dentro de suas próprias conjunturas internacional e nacional, ambos os prefeitos buscavam inserir o Rio de Janeiro no cenário político e econômico mundial, beneficiar interesses privados e para isso contavam com amplo apoio das classes dominantes e dos meios de comunicação.
Iremos analisar agora uma entrevista feita assim que o prefeito foi eleito pela primeira vez:
(...)O GLOBO: A ordem pública será a marca da sua gestão?
Paes: Vai ser uma das marcas, certamente.
O GLOBO: O senhor viu a primeira página do GLOBO com as suas promessas, no dia seguinte à eleição? Pretende cumprir todas as promessas de campanha?
(...)
O GLOBO:O senhor vai ter indicações dos partidos aliados para cargos...
Paes: A escolha do meu secretariado é minha, de mais ninguém. Posso conversar, ouvir opiniões, sugestões, mas a escolha é minha. Agora, eu pretendo governar com um arco de alianças. Pretendo conversar com o PT, o PSB, o PCdoB. Há áreas que acho que devem ser essencialmente técnicas, não devem ter políticos: Fazenda, Saúde, Educação, são áreas em que botar político não é bom.
O GLOBO:O senhor tem um técnico na Saúde, tem dito que na Fazenda e na Educação vão ser técnicos, e Obras. Seriam só essas ou vai ter mais alguma? Administração? Transporte?
Paes: Não sei. Às vezes até no Transporte você precisa de alguma mais articulada do que técnica por causa dos desafios ali. No transporte, penso num nome mais... Eu adoraria um Eduardo Paes para ser secretário de Transportes, que minha modéstia não me deixe errar.
O GLOBO: Urbanismo?
Paes: Técnico. Ali não tem como.        
Da entrevista é interessante percebermos a preocupação do jornal quanto a quem ocupará as secretárias do novo governo, se serão cargos políticos ou técnicos. Eduardo Paes diz que não nega os cargos “políticos”, porém concorda que certos postos devem ser ocupados por técnicos especialistas, que não estejam vinculados com política. Saúde, educação, fazenda e urbanismo são frisados por ele como secretárias basicamente técnicas. Quando ele diz que o urbanismo é um quadro técnico “Ali não tem como.” (PAES, 2008) segue a risca a doutrina neoliberal de despolitização da cidade, atendendo aos interesses do grande capital.
Quando voltamos para o início do século passado e analisamos os critérios que levaram a nomeação do Pereira Passos para a prefeitura do Rio encontramos diversas similaridades. À Pereira Passos, que era engenheiro e, antes de ser prefeito, havia trabalhado diversas vezes com a questão do ordenamento urbano, foi dada a missão de modernizar a capital da república, acabando com os problemas que atravancavam o desenvolvimento da cidade e do país. Essa confiança se deu basicamente devido a competência técnica do engenheiro-prefeito. Essa escolha foi saudada pela classe dominante e pela imprensa. No artigo escrito na revista “Rio de Janeiro”, “O ‘Bota-baixo’ revisado: O executivo municipal e as reformas urbanos no Rio de Janeiro”, Ângela Molins e Marly Silva da Motta dizem que “A nomeação de Pereira Passos, bem como os poderes a ele concedidos pela lei 939, foram bem recebidos pela imprensa (...). Os argumentos principais a favor da ‘ditadura do prefeito’ eram sua competência e seu caráter apolítico” (MOTTA E MOLINS, 2003).
Percebe-se, portanto, que a grande imprensa, que tem vínculos estreitos com a classe dominante, mantém sua preocupação na necessidade do caráter despolitizado de alguns cargos. Essa é uma forma que a elite dominante sempre usou para esvaziar o debate a respeito de questões importantes. Como é possível dizer que as reformas urbanas do Pereira Passos não tinham um caráter político? Assim como não é possível dizer que não é político o “choque de ordem” do Eduardo Paes.  Para desconstruir essa visão, volto a recorrer ao artigo da Motta e da Molins:
“No Rio de janeiro, havia excesso de política: fazia-se política no catete, no Congresso, na prefeitura, no Conselho Municipal. Fazia-se política nos sindicatos, nos partidos. E fazia-se política nas ruas. Por isso, um dos principais objetivos declarados da (...) “ditadura” do prefeito Pereira Passos, era livrar o Rio de janeiro do jogo pérfido da política, o que implicava desarticular a elite carioca” (MOTTA E MOLINS, 2003).
Mais do que desarticular a elite local, a política do presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos, uma política que já se desenhava desde a proclamação da república, era desarticular essa “política nas ruas”. Sidney Chalhoub elucida bem essa questão, quando diz que é
“possível sugerir que um dos sentidos da proclamação da Republica foi tentar pôr um dique e anular, ou pelo menos disciplinar, a influência cada vez mais decisiva que as agitações nas ruas da Corte estavam desempenhando nos rumos que tomavam os conflitos no interior da classe dominante.” (CHALHOUB, 1991).
O mesmo se pode aplicar hoje, na política de “choque de ordem” do Paes (guardando, é claro, as devidas diferenças dadas pelos contextos históricos distintos). O projeto da prefeitura não é apenas revitalizar a cidade e fazer dela ponto de atração turística e de investimentos. Existe um caráter ideológico nessa política e este é o da criminalização da pobreza. O bom relacionamento com o governador Sérgio Cabral, do PMDB, também articula essa política com a doutrina de segurança pública que se baseia na repressão policial violenta e a instalação da ocupação permanente, no que ficou conhecido como Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) que são instaladas nas favelas da Zona Sul e nas áreas de grande circulação de mercadoria, como o caso do morro do Alemão, próximo à Avenida Brasil.
Rose Barboza diz no site da Revista Fórum:
“o ‘Choque da Ordem’ busca garantir a ‘ordem pública’ baseando-se na culpabilização da população em situação de rua supondo, de antemão, que essa vá recorrer a meios ilícitos para se manter. Assim como na extinta ‘lei da vadiagem’, penaliza-se a suposição e não um delito em si.” (BARBOZA, 2009).
Esta, não é uma política nova. Chalhoub no artigo já citado acima, fala do medo que a cidade formal tinha da “cidade esconderijo”, onde os negros libertos, pobres e etc poderiam se abrigar. Isso explica, em parte, as ações dos governos no inicio do século contra essa “cidade esconderijo”. Zuenir Ventura, no livro “Cidade Partida”, fala da existência, hoje, de uma “cidade legal” e uma “cidade informal”, onde estaria a classe trabalhadora mais pauperizada da sociedade e é onde o poder público não consegue mais exercer controle.
Essa visão da “cidade partida” de Zuenir Ventura é interessante para percebermos que, ainda hoje, existe uma “cidade esconderijo”, utilizando as palavras do Chalhoub, que a cidade formalmente constituída teme. Sendo assim, tanto quanto as reformas do prefeito “bota-baixo”, como o “choque de ordem” articulado com as políticas do governo do estado fazem parte de um projeto de criminalização do pobre que, apoiados pela grande mídia, responde a uma visão preconceituosa da elite branca nacional a respeito das classes inferiores, vistos como potencialmente perigosas.
Além do mais, esta criminalização da pobreza se articula perfeitamente com os grandes projetos de atração de capital e valorização de certas áreas da cidade para benefício de grupos privados, tendo como justificativa ideológica o “fazer bonito” perante o mundo na Copa do Mundo de 2014 e nas olimpíadas de 2016.
 Alguns exemplos dessas políticas conjugadas podemos encontrar na revitalização da área portuária, no projeto do “Porto Maravilha” levou não só a remoção de moradores e moradores de rua, associada à destombamentos de prédios históricos para melhor se adaptar às demandas do capital, valorizando a região e ajudando a especulação imobiliária. O entrono do estádio histórico do Maracanã que foi totalmente desfigurado em sua arquitetura original, outros prédios históricos serão derrubados, com a remoção da “Aldeia Maracanã” uma ocupação de uma etnia indígena onde era o Museu do Índio (1953-1978), para a construção de restaurantes e estacionamento. A comunidade da Vila Autódromo em Jacarepaguá também será removida para a construção da Vila Olímpica, no que a prefeitura classificou como essencial para a realização dos jogos. Segue agora um trecho tirado do blog da Vila Autódromo na internet:
“A Prefeitura mentiu novamente ao dizer que a remoção é fundamental para os Jogos Olímpicos: o projeto vencedor de concurso internacional para o Parque Olímpico manteve a comunidade. Em mais uma tentativa, apresentou um projeto viário, alterando a rota da Transcarioca já em obras (e com várias irregularidades no licenciamento ambiental), somente para passar por cima da comunidade. Com a mudança constante de pretextos, a Prefeitura pretende legitimar a remoção de 500 famílias, e a cessão, para o consórcio privado Odebrecht - Andrade Gutierres - Carvalho Hosken, de uma área de 1,18 milhões de m², dos quais 75% serão destinados à construção de condomínios de alta renda.” (2012)

A relação de Pereira Passos com o setor privado não era tão diferente:
“A qualificação de Pereira Passos para o cargo de prefeito de relacionou ao fato de ele ter ocupado a direção executiva de uma importante empresa (...) pôde assim se situar na confluência entre o poder público e o privado, propiciando parcerias e indicando oportunidades de negócios” (MOTTA E MOLINS, 2003).  
Fica assim evidente que haviam aí outros interesses envolvidos. O projeto de modernização e desenvolvimento da cidade e do país, sonhado por Rodrigo Alves, Pereira Passos e por parte da elite nacional, é um projeto político que encontrou resistência não só entre as classes populares, como em parcela da classe dominante.
Do mesmo jeito, as reformas idealizadas pelo prefeito Eduardo Paes, fazem parte de um projeto político. Não há como separarmos o econômico do político. O que está em jogo é uma concepção que beneficia o capital financeiro e o capital imobiliário, enxergando nas classes pobres, apenas obstáculos ao desenvolvimento, que devem ser removidos. Outros modelos de revitalização podem ser e são pensados. Projetos que revitalizam zonas, principalmente do centro da cidade, porém com parâmetros distintos do projeto oficial da prefeitura. A candidatura do deputado estadual Marcelo Freixo pelo PSOL nas eleições para prefeito em 2012 foi, em parte, uma confluência de amplos setores da sociedade insatisfeitos com essa forma de fazer política e pensar a cidade, obtendo cerca de um milhão de votos.

Resistência ontem e hoje

Buscamos apontar as similaridades que aproximam a política urbana do início do século XX de Pereira Passos, e a política urbana do início do século XXI de Eduardo Paes. Agora, ao nos concentrarmos nas diferenças, uma delas em particular é a mais gritante: a resistência das camadas populares a essa política.
As políticas de reforma urbana aplicadas por Pereira Passos não se limitaram à abertura de grandes avenidas no centro da cidade, implicando na remoção de inúmeros cortiços onde parte da população pobre vivia. Como sabemos a questão da higienização também foi um forte marco de sua administração, apoiado pelo governo federal. Ao lado do sanitarista Osvaldo Cruz, elaboraram um grande plano de vacinação obrigatória com o objetivo de erradicar inúmeras doenças que afligiam a cidade do Rio.
É interessante vermos que o mesmo preconceito em relação às classes pobres, observados nas reformas urbanas, pode ser encontrado na questão da vacina obrigatória. Mesmo sendo algo que, teoricamente, traria benefício à população, a aplicação da vacina era feita sem nenhum tipo de conscientização e de forma violenta. O povo não precisava saber do que se tratava, ele devia apenas aceitar que o que o governo faz é o melhor para ele. O povo como agente político é potencialmente perigoso e por isso deve ser mantido passivo e desarticulado.
O tratamento que os agentes sanitários davam à população durante a vacinação, somado a política de reformas gerou uma grande revolta popular que levou as massas oprimidas às ruas em confrontos diretos e violentos. A conhecida Revolta da Vacina trouxe o povo para a ação política e no final conseguiu a principal reivindicação dos revoltosos, cessar a vacinação obrigatória.
Historicamente quando o Estado, representante da classe dominante, passa a aplicar uma política direta e truculenta de coerção e repressão das camadas mais pobres da população, ocorrem movimentos de resistência popular como o que vimos na Revolta da Vacina. Porém, hoje em dia, apesar de alguns atos isolados, de manifestações daqueles mais diretamente atingidos por esse tipo de política, não há um grande movimento de contestação que uma os setores da classe trabalhadora oprimida contra as reformas elitistas e anti democráticas do governo. O resultado disso é que na eleição de 2012, o atual prefeito Eduardo Paes foi reeleito com 64,60% dos votos contra 28,15% do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) e 0,15% do Cyro Garcia (PSTU), os candidatos que mais abertamente contrapuseram a política do atual prefeito.
Uma das razões que podemos encontrar é o fato que hoje o aparato que existe de manipulação e alienação da população é muito mais bem elaborado. Concordamos que, tanto na época de Pereira Passos, quanto hoje, a classe trabalhadora mais pobre é vista com preconceito, como um perigo em potencial e por isso se aplicam políticas de criminalização e extermínio da pobreza. Porém, em 1903, o prefeito do Rio de Janeiro era nomeado diretamente pelo presidente da república, nas próprias eleições presidências, o nível de participação era muito baixo devido à proibição ao voto dos analfabetos. José Murilo disse em seu livro “Os Bestializados”: “a exigência de alfabetização, introduzida em 1881, era barreira suficiente para impedir a expansão do eleitorado” (MURILO, 1987). Portanto a classe dominante, ao enxergar o povo como ignorante, e por, teoricamente, não precisar dele para os assuntos políticos maiores, não faziam um grande esforço de controle cultural dessa classe. Isso explica também a violência aplicada na vacinação obrigatória.
Hoje, apesar da crença de que o povo é ignorante ainda persistir, isto não é defendido em público. Devido aos trâmites da democracia eleitoral burguesa, para ser prefeito ou para qualquer cargo no Estado, você precisa passar por uma eleição. “Ser prefeito do Rio significa, agora, ter passado pelo difícil e desgastante teste das urnas e conquistado milhões de votos” (MOTTA E MOLINS, 2003). Portanto para poder aplicar essa política de criminalização da pobreza precisa-se ter o voto do pobre. Assim, o papel da grande mídia se amplia. É através da imprensa tradicional que a classe dominante produz um esforço de legitimação dessa política. Presente nos jornais, escritos e televisionados, nas novelas, etc a mídia vende um modelo de sociedade baseado no individualismo e no consumo. Isto somado ao refluxo dos movimentos sociais, que vivemos desde a década de 1990 e no Brasil em particular e no mundo em geral, a cooptação de grande parte do movimento social organizado, após a eleição do Lula (O qual o prefeito Eduardo Paes é um importante aliado), pode explicar a falta de um grande movimento de resistência popular.
Nesse sentido, a realização dos grandes eventos vai como uma luva para esse projeto. Durante sua campanha de reeleição um dos motes da campanha foi o slogan “O Rio voltou a sorrir.” passando a ideia de que agora o cidadão carioca pode ter orgulho de sua cidade que se lança como nunca antes no cenário internacional. Costumavam também passar a ideia de que era preciso reeleger Paes para que o projeto olímpico desse certo. Com grande ajuda da imprensa, a prefeitura construiu um sentimento patriota e de orgulho nos cariocas. Na ocasião da visita do Comitê Olímpico Internacional para avaliar a viabilidade da candidatura do Rio de Janeiro como sede dos jogos olímpicos o
“Comitê Organizador dos Jogos (Co-Rio), cuidou também da atmosfera cultural da cidade, através de ampla campanha publicitária. Inúmeros cartazes enaltecendo o valor dos Jogos Olímpicos e conclamando a população a vestir-se de verde e amarelo, porta-se de forma hospitaleira e civilizada nas vias públicas, enfim, transparecer abertamente aos visitantes nosso patriotismo, nosso orgulho, nossa alegria, nosso profundo desejo de se sediar tão prestigiado evento, enfim, nosso declarado ‘espírito olímpico’”. (MASCARENHAS, 2012)

Conclusão
Volta e meia, a questão urbana volta a ser tema principal do debate na sociedade. A política do “choque de ordem” e a preparação para os grandes eventos trouxe a tona velhas questões que nunca foram resolvidas, apesar do esforço de inúmeros outros prefeitos.
Nesse trabalho procuramos mostrar que a política urbana do prefeito eleito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, não tem muita coisa de novo. Tentando ao máximo não cair em anacronismos, podemos concluir que, mesmo que o contexto histórico tenha mudado muito e a classe dominante hoje não é a mesma que a classe dominante de cem anos atrás, é evidente que no tratamento as classes populares, a elite nacional é ainda carregada de preconceitos. Enxergam no pobre um perigo em potencial e por isso vemos a aplicação de uma política de criminalização e alienação da pobreza exemplificada não só pelo “choque de ordem”, como também com a política de segurança pública do governo estadual, aliado com o federal e na exaustiva propaganda midiática.
Nos primeiros anos da república, falava-se abertamente que o pobre e principalmente o negro recém-liberto, não tinham capacidade de fazer política. Isso é proveniente de um claro medo da força em potencial que essa população unida pode ter. Hoje já não é possível ser tão sincero. Os mecanismos de descriminação do povo são mais sutis e aparece, por exemplo, nos telejornais, quando um ato popular contra a presença do exército na favela, é desqualificado como atitudes de vandalismo inconsequente.
A discriminação, a política de criminalização e extermínio do pobre, e uma política econômica voltada para os interesses do grande capital, são bastante semelhantes, seja no início do século XX, seja hoje. Porém o capitalismo se desenvolveu e aprendeu com seus próprios erros do passado. A classe dominante, mesmo que veja o povo como ignorante e sem cultura, sabe da força em potencial que está ali presente e desenvolveu diversos mecanismos de controle e alienação.
Serão sempre válidas, para nós futuros historiadores e para a sociedade em geral, essas analises comparativas do que ocorreu no passado, com o que acontece hoje, pois assim, é possível enxergar o quanto uma política, que se apresenta como nova, pode ser carregada de uma lógica preconceituosa e elitista, muito similar à de cem anos atrás.
Este trabalho não se diz respeito somente ao Rio de Janeiro e seus cidadãos, mesmo que esse tenha sido o foco. Todo morador de uma grande ou média cidade pode sentir na pele os efeitos dessa política de cidade empreendedora e neoliberal. Esperamos assim contribuir para o debate historiográfico e social, além é claro, chamarmos à conscientização e à ação contra um modelo de cidade visto por parcela da sociedade como excludente e antidemocrático.  

[adendo posterior] Apesar de ter concluído o trabalho se perguntando porque não havia uma reação popular como na Revolta da Vacina, vivenciamos o que vou chamar por falta de um nome melhor de “Jornadas de Junho”. Uma série de grandes protestos no Brasil todo, que se estendeu por meses no Rio de Janeiro e é um reflexo do impacto dessa política de Paes de Cabral (governos do PMDB/PT) para a cidade do Rio de Janeiro.

Referências Bibliográficas:

BARBOZA, Rose. A política de extermínio da população em situação de rua. Disponível em: www.revistaforum.com.br/sitefinal/NoticiasIntegra.asp?id_artigo=5810 . acesso em 2 jun. 2009.

BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

CHALHOUB, Sidney. Medo branco de almas negras. Escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro. pp. 169-189, 1996.

CARVALHO, José M. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras. 2 e, 1987.

MASCARENHAS, Gilmar. Produzindo a Cidade Olímpica: Neoliberalismo e governança no Rio de Janeiro. In: Globalização, políticas públicas e restruturação territorial, Rio de Janeiro. Editora 7 Letras. pp 92 -108, , 2012.

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