terça-feira, 5 de novembro de 2013

As Brumas de Avalon e o Feminismo


            Escrito em 1979 pela estadunidense Marion Zimmer Bradley, As Brumas de Avalon causou grande impacto entre os fãs das histórias da lenda do Rei Arthur e na sociedade em geral. O livro que é dividido em quatro partes (A Senhora da Magia, A Grande Rainha, O Gamo-rei e O Prisioneiro da Árvore) se consagrou entre os mais e é reeditado até hoje.

            O que podemos explicar esse impacto na opinião pública é que, além de retratar uma lenda muito apreciada desde tempos imemoriais, Marion vai abordar o ponto de vista feminino da lenda do Rei Arthur, num fato único entre as publicações que abordam esse tema. A autora também não poupa críticas a Igreja Católica, apontada como autoritária e opressora em relação às mulheres.
            E Marion não para por aí. O livro também aborda questões polêmicas como a valorização das religiões pagãs, chamadas de bruxaria pelos cristãos e a homosexualidade, mesmo que de forma mais sutil. Todos esses elementos fazem com que possamos colocar “As Brumas de Avalon” no campo dos livros progressistas dentro do universo dos livros de fantasia.
            Quando Marion Zimmer Bradley escreve As Brumas de Avalon no final da década de 70, ela já tinha 49 anos, portanto havia passado por toda a efervescência política dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos e no mundo. Essas décadas ficaram muito conhecidas pelos movimentos hippies e pelos direitos civis dos negros e negros, além das grandes manifestações contra a guerra do Vietnam.
De fato estes movimentos tiveram grande protagonismo, mas não foram os únicos. Os oprimidos do mundo se levantavam contra a tirania de toda espécie.        Foi nesse período que surgiu os movimentos feministas e homossexuais – além de outros – que questionaram a esquerda tradicional por suas posturas muitas vezes moralistas e machistas. Com grande protagonismo dos jovens, essas questões agitaram as décadas de 1960 e 1970 e se tornaram um novo marco para a esquerda e os movimentos sociais.
Portanto o movimento feminista cresce vertiginosamente e as mulheres passam, cada vez mais, a lutar contra uma sociedade patriarcal e opressora, que as condenavam a viver sob a ditadura da família cristã. Marion vivenciou esses processos e não há como não identificar em seu livro os acúmulos de anos de luta pela libertação da mulher.
O embate mais evidente do livro é entre o cristianismo, representado pela Igreja Católica e o paganismo, mais especificamente a antiga religião céltica, de a qual Marion toma claro lado. Pelas 876 páginas dos quatro livros a autora questiona diversas doutrinas éticas, morais e teológicas. Nesse trecho ela vai questionar a relação do cristianismo com a natureza, incluindo o homem nessa natureza.
“A diferença é maior do que eu pensava. Até mesmo aqueles que trabalham a terra, quando são cristãos, adotam um modo de vida que está muito distanciado desta terra; dizem que seu Deus lhes deu o domínio sobre todas as coisas que crescem e sobre todos os animais dos campos. Ao passo que nós, moradores dos montes e pântanos, florestas e campos distantes, sabemos que não é nosso o domínio da natureza, mas sim ela que nos domina, desde o momento em que a luxúria se agita nas virilhas de nossos pais e o desejo no ventre de nossas mães para nos gerarem, sob o domínio dela, até nosso crescimento nesse ventre e nosso nascimento no devido tempo, mesmo a vida das plantas e animais que têm de ser sacrificados para nos alimentar, vestir e nos dar forças para vivermos... Tudo isso está sob o domínio da Deusa, e sem sua misericórdia nenhum de nós poderia respirar, tudo seria estéril e morreria.” (livro 2)

Isso, por si só, já reflete também uma questão ambientais que começava a ganhar força no final da década de 1970. Mas nesses embates com a fé cristã, o posicionamento da mulher na sociedade está sempre presente, seja de forma direta ou indireta. Marion apresenta a antiga religião celta e a sociedade que se organizava em volta dela, como uma sociedade onde a mulher tinha grande destaque. A “Senhora do Lago”, que ficava em Avalon, era quem de fato governava a Bretanha e os reis homens eram responsáveis apenas pela guerra. Isso assim permaneceu até depois da invasão dos romanos na ilha. Com a cristianização do antigo Império, a Bretanha, ou pelo menos a nobreza bretã, foi caindo progressivamente nas mãos da Igreja.

Dessa forma ela mostra as contradições e diferença entre os seguidores da Deusa, a deusa da vida, da fertilidade e o Deus cristão, mostrado como vingativo e que condena a mulher e o corpo demoníaco. Assim a autora não só questiona o lugar dado as mulheres na sociedade cristã (que deveriam ser apenas esposas fies e dar filhos, de preferência homens, para seus maridos) como questiona o moralismo da nova fé. Em diversos trechos as personagens principais (Viviane, Morgana, entre outras ligadas ao culto da Deusa) por diversas vezes censuraram o culto cristão à virgindade que, para sua religião, era um verdadeiro pecado.

“os cristãos valorizavam a castidade acima de tudo, enquanto, em Avalon, a virtude mais alta era entregar o corpo ao Deus ou Deusa, em união com todo o fluxo da natureza. Para cada um dos dois lados, a virtude do outro constituía o mais grave pecado e manifestação de ingratidão para com o seu Deus. Se um deles estava certo, o outro era necessariamente um mal. Parecia-lhe que os cristãos estavam rejeitando a mais sagrada das coisas sob o céu, e, para eles, ela não seria muito mais do que uma prostituta.” (Livro 1)

Isto está ligado diretamente a chamada “Revolução Sexual” dos anos 1960 e que sobreviveu pelos anos 1970, que questionou o moralismo social e valorizou o amor e o sexo como forma de prazer livre. O prazer deve ser valorizado e não criminalizado, questionavam os jovens dessas décadas, para horror dos mais conservadores.

“Faça amor, não faça a guerra!” era um dos lemas gritados pelos manifestantes do Maio de 1968, na França, quando milhares de estudantes foram as ruas em luta por uma sociedade justa, igualitária e livre de opressões de qualquer gênero. Os violentos protestos que criticavam a sociedade de maneira abrangente e total, começaram pela reivindicação de quartos mistos nos dormitórios universitários. Pela primeira vez o amor, o sexo e o prazer se tornaram uma arma política.
 
Em As Brumas de Avalon, Morgana fala para seu primo Lancelote, quando eles vão escalar um morro e ela prende a saia na altura dos joelhos.
“- Nunca me ocorreu que a pudicícia tenha muito a ver com pernas nuas para subir morros. Os homens devem saber sem dúvida, que as mulheres têm pernas parecidas com as suas. Não deve ser ofensa muito grande ao pudor ver aquilo que são capazes de imaginar. Sei que alguns dos padres cristãos dizem isso, mas geralmente eles parecem pensar que o corpo humano é obra de algum demônio e não de Deus, e que ninguém pode ver um corpo de mulher sem ser tomado pelo desejo furioso de possuí-lo.” (Livro 1)

Marion avançou em questões ainda mais polêmicas caras ao feminismo, como o abordo. As vezes que esse tema foi abordado no livro - e não foram poucas - a autora deixou clara que a decisão cabia única e exclusivamente à mulher, negando qualquer domínio do corpo feminino pela Igreja, ou pelo homem. Não vamos achar, porém, que o abordo em si é de alguma forma valorizado ou amenizado. Pelo contrário, a decisão de tirar um filho, como Morgana teve que tomar, era algo difícil e sua consequência séria para a saúde da mulher. Ainda assim, a vida da mulher em questão é posta em primeiro plano em relação à vida que está por vir e quem irá decidir isso é a mulher, senhora de seu corpo.

 Já vimos como a autora de As Brumas de Avalon refletia – propositalmente ou não - com os movimentos feminista que nos anos anteriores haviam alcançado importantes vitórias na luta pela emancipação feminina. Porém, no movimento feminista, assim como no movimento negro e os demais que eclodiram nas décadas aqui analisadas, não havia somente uma linha de pensamento consensual. Havia aquelas que acreditavam que a conquista do feminismo seria garantir as mulheres igual tratamento em relação aos homens no ambiente de trabalho e na sociedade e haviam aquelas que diziam que isso só seria possível com a superação da sociedade que criava o machismo e todas as outras formas de opressão.

            Até hoje a primeira visão – uma visão liberal – é a mais propagada pela mídia e pelas classes dominantes. No dia 8 de março, consagrado mundialmente como dia da luta das mulheres, os jornais fazem reportagens mostrando como as mulheres conseguem fazer as mesmas coisas que os homens, sem descuidar da aparência. Chegam a pincelar que, até hoje, as mulheres ganham menos que os homens, mas afirmam que estas estão ganhando espaço no mercado de trabalho.

            O que eles não revelam é que, ao contrário do que lutava o movimento feminista, as mulheres não ganharam mais respeito em relação ao mundo do trabalho. Elas agora acumulam a função de mãe e trabalhadora, com o agravante que continuam ganhando menos. Não superamos a sociedade patriarcal e machista que divide as funções do lar e do trabalho entre homens e mulheres. E muito menos superamos o moralismo de conservador que vê o prazer e o sexo como tabu, principalmente em relação ao prazer da mulher. O máximo que se “avançou” nesse aspecto – caracterizando na realidade como um verdadeiro retrocesso – é a mercantilização da mulher, reforçando seu caráter de objeto, como vemos na publicidade, nas novelas etc.

            Porém, como vimos, a esquerda tradicional, herdeiro do stalinismo soviético também por muito tempo não respondeu as demandas desses novos movimentos, insistindo numa leitura mecanicista do materialismo dialético de Marx. Mas não podemos presumir que o marxismo (e as ideologias rupturistas emgeral) ficaram caladas em relação as questões levantadas por negros, mulheres, homossexuais etc. Resgatando leituras de Trotisky, Rosa Luxemburgo, Lênin, Backunin, Emma Goldman e outros revolucionários, que no passado já haviam apontado a necessidade surgiram diversas organizações que incorporavam essas bandeiras para a luta pela derrubada do capitalismo.

            Nos Estados Unidos, o Freedom Socialisty Party (partido de origem trotskista, racha do Socialist Work Party, o maior partido trotyskista do país na ocasião) liderado por Clara Fraser, é um dos que melhor responde à essas bandeiras da esquerda.

            Tamara Tuner, filiada hoje ao FSP escreve que

“muitos esquerdistas pensaram que a "questão da mulher" era divisionista e secundária. Eles colocaram barreiras à liderança das mulheres e as tratavam com condescendência. Estes radicais, em sua maioria do sexo masculino, eram inflexíveis e conservadores e se surpreenderam com os eventos sociais que começaram no final de 1950. Eles consideraram os movimentos das pessoas de cor, mulheres, estudantes e de homossexuais como desvios e aberrações da luta de classes "real", que foi feita por sindicalistas homens brancos na indústria pesada.” (TURNER, 2008)    

E acrescenta sobre Clara Fraser:

“Fraser explicava que a questão de raça e da mulher compartilhava uma natureza dual. Cada um deles é um problema com a sua lógica, história e necessidades. Mas a exploração no trabalho une as mulheres e pessoas de cor com a luta de classes. Mulheres de cor, que combinam os dois aspectos de raça e gênero, têm um papel central no esclarecimento dos seus problemas e do movimento sindical.” (TURNER, 2008)

            Portanto, é impossível desassociar o feminismo de seu caráter de classe. Não aceitaremos qualquer opressão de gênero, mas são as mulheres, negras e trabalhadoras quem mais sofrem com o machismo e a exploração do capitalismo. 

Marion Zimmer Bradley em As Brumas de Avalon não avança numa questão classista em relação ao feminismo. Você pode argumentar que seria anacrônico colocar um debate de classe e a necessidade de superar a sociedade desigual bem no início da Idade Média. Porém, muitos diriam que colocar questões feministas como moral e bons costumes, aborto sociedade patriarcal também seria anacrônica, ainda assim ela o fez brilhantemente sem fugir de verossimilhança interna.

Portanto, é possível abordar a questão da opressão de classe, principalmente no universo feminino. Os personagens não precisam gritar por uma sociedade justa, igualitária e controlada pelos camponeses, mas é possível expor as formas de opressão de caráter de classe (nobres, cleros contra camponeses e artesãos) e como isso é suportado pelas mulheres.

Porém Marion prefere dar foco apenas a nobreza e o “terceiro estado” não é mais que um coadjuvante, muitas vezes nem isso. Alguém pode insistir que o foco da história não é esse e que seu enredo abordaria somente esse universo e nós vamos insistir que ainda assim essa é uma opção do autor ou autora. Mesmo numa história onde o foco está nas classes privilegiadas, é possível mostrar a opressão e as contradições desse tipo de sociedade.

Em As Brumas de Avalon, porém, o Rei Arthur (e outros antes dele) é apresentado como um rei bom, que distribui justiça pelas terras sob seu domínio. Eu me pergunto como um rei das classes privilegiadas, que não paga imposto e explora o trabalho não livre do servo pode ser justo? Pode ter havido reis mais cruéis, sádicos e ambiciosos, mas ser melhor que estes não o qualifica como bom rei e justo. O empresário que não desvia, ou o político de direita que não roupa, ainda assim defende uma sociedade de exploração e de injustiça em sua essência.      

A própria contraposição apresentada por Marion à sociedade machista e patriarcal cristã, é elitista. Num trecho, a Senhora do Lago Viviane fala para sua sobrinha Morgana a respeito dela ter entregue sua virgindade ao próprio irmão (Arthur) num ritual de consagração.

“- Será que a deixei muito tempo entre os cristãos, afinal de contas, ouvindo suas conversas sobre o pecado? Pense, filha. Você é da linhagem real de Avalon, e ele também. Poderia eu tê-la entregue a um plebeu? Ou poderia o Grande Rei receber uma plebéia?”

            Em Avalon e na sociedade defendida por Viviane e Morgana ao longo da história, a nobreza não perde seu posto e para a primeira não tem problema que Morgana tenha feito sexo com seu irmão, mas seria indesejável que ela, de sangue nobre, transasse com um plebeu.
           
            Portando chegamos a conclusão que As Brumas de Avalon é um livro primeiramente bom, ou seja, bem escrito, com uma boa trama e um bom enredo. Também é possível dizer que é um livro progressista, que apresenta diversas questões de suma importância e levanta questionamentos cruciais contra o machismo e a opressão da sociedade patriarcal cristã. Dentro do universo dos grandes livros de fantasia, Marion consegue se por definitivamente à esquerda dos autores mais consagrados, mas nós, como Nerds Socialistas, não podemos deixar de apontar as limitações e contradições dessa bela obra e apresentar um ponto de vista classista e que nos ajude a apontar as opressões no contexto da luta de classes e como bandeira de luta cruciais para a superação do sistema capitalista causador dessas opressões.
           
 Fontes:

As Brumas de Avalon: livro 1, 2, 3 e 4.

Site do Freedom Socialist Party: http://www.socialism.com/drupal-6.8/?q=node/183


Baixe os 4 livros de As Brumas de Avalon em PDF aqui:
http://www.cursosdemagia.com.br/downloads.htm 

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