Introdução
Ser um aventureiro em Arton é
seguir uma profissão arriscada. No mundo existem padeiros, artesãos,
camponeses, vidreiros e outros. Eles são importantes na manutenção da nossa
sociedade, dão coesão interna. A classe dos aventureiros, se assim pode ser
chamada, é mais uma dessas profissões. Entretanto, o que os diferencia das
demais classes mundanas são as capacidades acima da média, seja física,
intelectual, ou conhecimento em alguma área obscura como magia.
Particularmente acredito que o
que diferencia mesmo um aventureiro de uma pessoa comum é sua capacidade de ser
herói. Com grandes habilidades, usá-las para desvendar mistérios antigos,
explorar regiões desoladas ou esquecidas, enfrentar monstros, necromantes e
dragões.
Desde os meus treze anos eu
decidi ser um herói. Alguém que as pessoas necessitassem para protegê-las. Não
sei ao certo de como essa ideia surgiu, mas suspeito que tenha a ver com a
minha criação. Meus pais, Aldred C. Maedoc II e Therese Incarn, eram heróis,
membros do Protetorado do Reino, o maior grupo de heróis do mundo civilizado,
agentes especiais da Coroa de Deheon, a serviço do Reinado. Eles adquiriram
alguma fama e tesouro, mas isso não me interessava muito. As histórias fantásticas,
cada dia uma diferente, foram os meus reais incentivadores.
Porém, ao longo da minha vida,
muitas coisas aconteceram que me impediram de começar minha carreira de herói.
Geralmente, um jovem aventureiro sai de casa em busca de estrada aos dezoito, dezenove
anos. Há casos de aventureiros mais novos ainda. Mas era raro que um jovem, ao
passar dos vinte anos, ainda quisesse começar a se arriscar pelo mundo em busca
de fama, fortuna e lutar contra monstros.
Eu sou um desses casos raros.
Somente em 1410, aos vinte e três anos (quase vinte e quatro) que decidi seguir
meu rumo. Mas esta história está sendo escrita em outro diário.
O que gostaria de contar a
você, caro leitor, são algumas histórias de antes de pensar em me jogar na
estrada. Antes de receber minha katana de meu pai. Antes de ler o livro mágico
que me levou à Sckharshantallas. Antes de tudo isso.
Eu poderia começar em muitos
momentos, pontos específicos, para construir uma narrativa que justificasse os
meus adiamentos para seguir a carreira de aventureiro. Como expliquei acima, eu
demorei mais do que o considerado “normal”, segundo as estatísticas, para
começar a se aventurar por aí.
Entretanto, não quero me
justificar – embora acabe fazendo isso uma vez ou outra. O que fiz está feito e
não pode mudar. Portanto, não há desculpa, não há lamento. Toda minha vivência
anterior, todo aprendizado me serviu para ser um aventureiro pleno depois. Ou
quase isso.
Por isso, gostaria de começar a
contar quando eu tomei minha decisão. Em 1400, no começo do verão, lá pelo mês
de Altossol. Eu tinha apenas treze anos.
Valag 6,
Altossol, 1400 CE.
Esse foi o dia do meu pai. Era
seu aniversário de quarenta e seis anos. Todo ano, nessa época do verão,
Vectora, a cidade-mercante voadora, aporta em Valkaria. Porém, nesse tempo nós
morávamos em Ridembarr, uma pequena cidade a dois dias de caminhada da capital
de Deheon.
Pacata e de vida simples, o
vilarejo em que morávamos desde o nascimento de Mary Anne, minha irmã, há dez
anos, era acolhedor. Acolhedor demais, eu diria. Havia apenas vinte ou trinta
casas espalhadas por uma pequena planície que entrecortava uma colina maior. A
um dia de viagem pela estrada, dava para chegar à Pequena Colina, a comunidade
de halflings.
O cheiro de campo era uma
constante, de modo que eu havia me acostumado totalmente a ele. Meu pai adorava
viver ali. Um vilarejo com poucas pessoas, mas pessoas conhecidas, amigáveis,
onde ele podia beber ao final da tarde, depois de um longo dia de cavalgada com
Farrapo, seu cavalo-irmão.
Minha mãe, entretanto, não
gostava muito do clima interiorano, com poucas pessoas, gente simplória que
tinha como ápice da preocupação a colheita do vizinho. A fofoca e os assuntos
sobre o vestido ou cabelo trançado eram a norma. Desse modo, Therese Incarn, a
poderosa maga encantadora, ex-membra do Protetorado do Reino, não possuía
amigos. Meu pai sempre foi mais enturmado com gente simples. Por trás do
poderoso porte de ranger aventureiro, Aldred C. Maedoc II era um homem simples,
de prazeres simples.
Minha irmã, com então nove
anos, tinha aprendido a viver a vida toda em Ridembarr. Cresceu com amiguinhas
da escolinha de Tanna-Toh, com amiguinhas filhas da vizinha e era bastante
popular. Na época, eu considerava minha irmã bastante feia e sem graça e
pensava que as amigas só gostavam dela por que éramos ricos, filhos de duas
pessoas famosas.
Eu mesmo não tinha muitos
amigos. Para falar a verdade, muita gente me considerava um amigo. Chamavam-me
para brincar sempre, principalmente de luta com espadas e escudos de madeira. Havia
uma ideia de que eu era bom nisso, porque era filho de aventureiros. Eu me
divertia, mas sempre mantive uma distância que eu considerava saudável deles.
Eles me viam como amigos e eu
os via como colegas. Pode parecer que eu era arrogante. E era mesmo. Não tinha
consciência disso, mas eu me achava melhor que todo mundo. Também pudera, eu
havia vivido um pouco em Valkaria e, mesmo que tivesse sido até os quatro anos,
eu ainda gostava de lembrar, lá no fundo, da grande estátua da deusa da
humanidade. Àquela época, Valkaria era considerada uma falsa deusa, só
reconhecida em Deheon mesmo. Desse modo, eu pensava ser um valkariano preso em
uma cidadezinha minúscula, com pessoas minúsculas. Eu sempre quis voltar para
Valkaria, desde quando me entendia por gente.
Até agora, falei o que eu penso
hoje em dia, fazendo uma projeção sobre mim mesmo no passado. É uma espécie de
autocrítica. Se percebermos bem, qualquer um poderia pensar que este é o começo
do histórico de um futuro vilão. Um garoto rico, arrogante e enfadado.
Pois bem, no verão de 1400, as
coisas mudaram e por isso eu decidi ser um herói.
Pela manhã, enquanto meu pai
cavalgava com Farrapo pelos campos próximos, minha mãe nos acordou, eu e minha
irmã.
- Vamos preparar uma festa
surpresa para seu pai.
Eu bufei ainda entorpecido de
sono e tedioso. Cara, como eu era chato quando criança. Minha irmã, entretanto,
saltou da cama alegre e contente. Ela adorava festas e bolos. Quando era mais
nova ainda, ganhava presente de aniversário mesmo em aniversário dos outros, de
tão mimada que era. Mas aos nove anos ela entendia que só se ganhava presentes
no dia do próprio aniversário.
Eu arrumei o meu quarto,
antecipando a serva que trabalhava lá em casa. Detestava que ela mexesse em
minhas coisas. Eu tinha um monte de pergaminhos de contos de histórias de
bardos. Eram coisas fantásticas sobre heróis aventureiros. Naquela época eu
acompanhava as histórias de uma lenda urbana específica, o tal do
Homem-Caranguejo. Segundo o bardo, ele era um vigilante mascarado que atuava em
Valkaria e protegia os inocentes. Era algo bem divertido para se ler, para uma
criança como eu.
Fui para o quintal e brinquei
com o nosso cachorro, Joshy, um poodle um pouco maior que o normal. De lá, pude
ver a maravilhosa cidade-mercante. Vectora voava sobre a enorme estátua de
Valkaria, no horizonte. Meu olhar se perdeu ali por algum tempo. Fiquei
imaginando como seria aquela magnífica cidade.
Súbito, vi um homem no portão
da minha casa. Ele vestia roupas negras e um chapelão negro que ocultava seu rosto.
Não tinha visto chegar, mas como eu estava distraído pela visão de Vectora no
horizonte, não estranhei. Mas me incomodei com sua presença.
- Quem é?
O silêncio foi irritante.
- Fale o que quer.
- Vim para a festa, garoto de
sangue de dragão.
Era verdade. Fazia pouco tempo,
sua mãe revelou o sangue dracônico que corria em minhas veias. Aparentemente, o
ancestral da família Maedoc era um dragão dourado de muito poder. Por isso, era
compreensível que os poderes de dragão despertariam em alguma geração de
descendentes. E, naquela vez, eu havia sido o escolhido. Mas como aquele homem
desconhecido sabia disso?
- Quem é você e o que quer?
Eu era arrogante demais para
uma criança. Mas o desconhecido retirou o chapéu. Era um tamuraniano, com seus
olhos amendoados e cabelos negros. Mas era um tipo velho, com bigode muito fino
e várias rugas pela testa e perto dos olhos. Ele parecia, entretanto, ser um
pouco mais novo que meu pai, que já tinha alguns cabelos grisalhos.
- Eu sou Satoshi Yamada, um
amigo de seu pai.
Ele sorriu com seus dentes
amarelados. Eu não gostei muito dele. Algo me dizia que era encrenca. Decidi
não acreditar nele.
- Meu pai não está. Logo ele
virá. Minha mãe está em casa. E ela tem ligação mental comigo e sabe o que está
acontecendo. – Minha mãe era do tipo super protetora. Era verdade que ela
mantinha um contato telepático comigo, minha irmã e meu pai. Mas dizia não ler
pensamentos, apenas estava ali de precaução. Se algum de nós da família
precisasse de ajuda, bastava pensar pedindo a ela. Segundos depois, ela
apareceria com um teletransporte.
- Não se preocupe. Eu espero
seu pai aqui fora mesmo.
Tomei aquilo como um sinal de
que ele não era perigoso. Resolvi me aproximar para vê-lo melhor. Percebi que
ele carregava uma bolsa de couro com alguns pergaminhos. Interessei-me por
isso.
- Gostaria de ler um?
- Posso?
Peguei um pergaminho antes de
sua permissão. Não culpem meus pais pela minha educação. Eles tentavam me
ensinar modos, mas eu era muito metido naquela época.
O pergaminho estava escrito na
língua comum, o Valkar. Estranhei não estar escrito na língua do tamuraniano,
mas decidi ignorar o fato. Era a história de um jovem samurai que enfrentava
monstros. Um conto de aventuras. Algo que eu gostava bastante. Sentei próximo
ao portão, ainda fechado, e comecei a ler. Poucos minutos depois, tinha
terminado e queria mais, queria saber o desfecho da história.
- Estes contos são de minha
terra. Se te interessar, pode levar todos. – Ele disse com seu sorriso amarelo.
Peguei sua bolsa, abrindo o portão. Agradeci em seguida, pois isso eu sabia
fazer.
Foi assim que eu comecei a
conhecer a cultura tamuraniana.
Meu pai chegou à noite e havia
alguns convidados, amigos dos meus pais para a festa. Minha mãe havia convidado
os vizinhos e outras pessoas de Ridembarr, mas eles não apareceram, achando que
não estavam “no mesmo nível social” que os meus pais e seus amigos de Valkaria.
Revi meus primos, David, Ian e
Peter. Francis também estava lá e chorava muito. Meus primos eu considerava
amigos. Ou algo parecido disso. Era família. E eu sempre dei valor à minha
família. Vivendo em Valkaria, eles moravam muito perto de nós e nos visitavam
às vezes. Havia tempos em que os visitávamos também. A família Incarn, de minha
mãe, era extensa e vivia em Valkaria. Meu pai, entretanto, havia perdido o pai
e a mãe, meus avós, há alguns poucos anos. Sua irmã e seu irmão viviam em
Namalkah, bastante distante. Não que isso fosse desculpa, pois minha mãe era
capaz de nos levar com magia. Meu pai que não queria mesmo ir para lá. Ele
tinha alguma desavença com sua irmã, eu acho.
Conheci alguns ex-colegas de
aventuras dos meus pais. Um anão chamado Maerthenim e uma elfa chamada
Julyanantalaria, ou Julyana. O anão era bem engraçado e contava muitas piadas,
bem diferente do padrão estereotipado do anão que as histórias contavam. Já a
elfa, era tudo aquilo que se esperava de um elfo. Fechado, de poucas palavras,
mas extremamente belo. Ela era a mulher mais linda que já tinha visto na vida.
E era bastante jovem para os padrões élficos. Tinha uns cento e setenta e cinco
anos, eu acho. Não tinha coragem de falar com ela, é claro. Sua beleza era
extrema e eu era um garoto à flor da idade, acabando de chegar à puberdade.
Bem, não preciso entrar em detalhes aqui.
Ao final da festa, todos foram
embora, exceto meu tio Louis e meus primos. Meu tio era um professor da
Universidade Imperial e lecionava sobre a história do Reinado. Era um
intelectual, um homem à frente de seu tempo. Eu adorava ouvir as curiosidades e
os fatos do mundo. Acho que ele foi a minha grande influência para entrar na
Universidade também, anos depois.
Bem, este dia serviu para
apresentar-lhes Ridembarr, um pouco da dinâmica da minha família e um pouco
sobre mim mesmo, usando como pano de fundo o aniversário. Introduzi pessoas
importantes para a história que se seguirá no próximo capítulo.
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